“O que é a psicanálise? Ela é uma psicoterapia ou o que?”. Essas são perguntas que aparecem em algumas conversas, principalmente quando a Psicanálise é considerada no contexto das práticas psicológicas e da saúde.
Elas podem vir acompanhadas de críticas sobre a eficácia e a capacidade da Psicanálise em produzir determinado tipo de efeito no tratamento, ou para tentar situar a proximidade e a diferença da Psicanálise em relação a outras práticas. Nesse caso, torna-se importante posicionar a discussão a partir de outro ponto de vista, situando-a melhor.
É um fato que a Psicanálise está muito próxima das práticas psicoterápicas e faz parte de seu contexto. O começo de sua história foi como psicoterapia. Havia um objetivo claro, a cura pela palavra (talking cure). O que sua prática visava? A redução e/ou remissão dos sintomas histéricos das pacientes não tratadas pelos médicos neurologistas e psiquiatras da época. Isso era bastante claro.
Freud acompanhou o trabalho de Josef Breuer [médico] enquanto este propunha a cura pelas palavras, que também chamava de “limpeza de chaminé”. As pacientes sofriam por ter pensamentos que não conseguiam exprimir, e a limpeza de chaminé era uma forma de exteriorizá-los.
Isso aconteceu até o momento em que Freud começou a identificar elementos sexuais nos discursos das pacientes e a presença de um fenômeno diferente, que era algo como a atualização da história pessoal da paciente na realidade do tratamento, produzindo um automatismo reativo em direção ao médico. A esse fenômeno, Freud deu o nome transferência, que acontecia quando havia uma resistência da paciente em falar de determinados conteúdos que lhe eram penosos. Nessa hora, ela se voltava para o médico e o colocava em questão.
Inicialmente, Freud acreditava que trabalhar com a transferência poderia fazer com que a paciente se curasse de seus sintomas histéricos, e assim também com os obsessivos, fóbicos etc. Isso o fez se afastar de Breuer e ambos seguiram por caminhos diferentes.
Então, ele começou a estudar os sonhos, a sexualidade, os ditos espirituosos, erros e enganos cotidianos e assim por diante, caminho claramente diferente do que comumente se faz na área da saúde. Seguiu, na verdade, para a área das humanidades, mesmo utilizando termos como “psicopatologia da vida cotidiana”, neurose, perversão etc.
Acompanhando o percurso de seus textos, Freud já não falava exatamente de processos de saúde-doença. Embora mantivesse os termos da área, sua proposta mudava de campo e os termos ganhavam outras significações. Ele se afastou gradativamente dos discursos psicopatológicos, adentrando nos discursos sócio-psicológicos.
Sua produção sempre ficou nesse meio de caminho, embora para o leitor mais atento, ela tenha passado a apontar mais para as humanidades que para as biológicas/patológicas, tanto que, ao final de sua obra, Freud já dizia que enquanto terapêutica, a psicanálise encontrava algumas dificuldades [considerando os critérios exigidos a uma psicoterapia], mas enquanto experiência, ela tinha um lugar fundamental entre as ações humanas, uma prática de valor e importância.
O percurso do psicanalista francês, Jacques Lacan, em sua releitura da obra freudiana, deixa isso muito claro: ele desbiologiza e despatologiza as discussões dos sintomas da psicopatologia, colocando-os na ordem da palavra e do significante. O significante, rapidamente falando, é a palavra sem o seu significado, é o som da palavra sem se prender em seu significado ou em sua referência.
Ao dizer “touro”, pensa-se em um animal de quatro patas, robusto, calda com pelos etc, e há um animal relacionado. A palavra “touro” comporta o significado (animal de quatro patas, robusto etc), a referência (o animal na realidade), e o som “touro” (significante). No entanto, a junção dos sons associados às letras t-o-u-r-o não tem relação alguma com o que se pensa do animal, nem com o animal a que referencia. Assim, a palavra “touro” está mais perto das palavras “toureiro” e “tourada”, que o animal touro está da pessoa toureiro e do evento tourada. O que junta o animal touro, a pessoa toureiro e o evento tourada são suas relações sociais, o que junta as palavras touro, toureiro e tourada são suas relações linguísticas. Dessa forma, os significantes funcionam em uma ordem, uma organização, podendo ser trabalhados sem os significados ou as referências.
Quando Lacan, psicanalista francês, coloca os sintomas na ordem do significante, ele faz o seguinte: ao invés do sintoma ser tomado como algo natural, biológico ou patológico, ele passa a ser entendido como um som que faz parte do contexto linguístico do paciente, um contexto que acompanha esse paciente desde antes dele nascer, e em relação ao qual o paciente está preso, mesmo que acredite não estar. Nessa perspectiva, é em relação à palavra que devemos nos posicionar, principalmente em relação à palavra da doença que é falada no consultório.
Assim, os problemas são tratados a partir da forma como são falados pelo paciente, de sua relação com a linguagem particular que ele carrega para lá e para cá. Fica claro que não estamos tratando os sintomas como processos patológicos em si, mas como processos patológicos e como processos linguísticos que nomeiam os processos patológicos.
Um exemplo: Quando alguém diz que tem depressão, ela realmente tem um sofrimento ali ou está se sentindo presa à vivência que a palavra depressão produz em sua vida? Há sintomas, evidentemente: geralmente encontra-se tristeza, desmotivação, ansiedade etc. Mas esses sintomas não são vivências e palavras que carregamos para todos os lados? O paciente chega dizendo que tem depressão, mantêm-se aprisionado no significado dessa palavra, sem se perguntar se é isso mesmo que lhe acontece. Mais que isso, mesmo tendo sintomas, suas frases são sempre pesadas e duras consigo mesmo: “eu não consigo”, “eu não sei”, “eu não posso”, “eu sou incapaz”, “eu nasci assim e não mereço viver”, “minha vida é horrível”, “Deus me castigou”. Não são todas frases, ou seja, organização de palavras em fileira?
Outro exemplo: Quando alguém está angustiada, ficando em desespero, afastando-se dos outros, sem saber o que fazer, e então alguém lhe pede que fale o que está sentindo, e ela fala, esse seu ato não produz uma organização que vem a aliviar seus sintomas, que a auxilia a ficar menos preocupada? O que acontece se não o fato de que a palavra constitui um novo funcionamento ali onde havia um vazio na vivência? Obviamente, não é a palavra em si, mas da forma como ela é colocada junto às outras, porque depende de como as palavras são posicionadas, depende de como sua composição funciona e mobiliza possibilidades.
Se a psicanálise compreende os sintomas como parte de uma linguagem pessoal, então ela trata os problemas como processos de interface entre a área de humanas/sociais e da saúde, e não somente como processos da área de saúde e de biológicas.
Dessa forma, ela é mais focada nos sintomas para reposicionar nossa forma de escutá-los e de lidarmos com eles por meio das nossas palavras. Esse reposicionamento, na verdade, não seria dar um novo significado a eles (significados: conceitos das palavras), mas recolocar a forma como as nossas palavras estão em torno deles (significantes-sons das palavras).
Nesse caso, ao invés da pessoa fazer o tratamento para reduzir, deixar de ter os sintomas ou aprender novas habilidades (foco na modificação de sintomas), para construir novos significados para os sintomas e as vivências que tem (foco na ressignificação), ela constitui novas relações entre as palavras que fazem parte de sua vida particular e que a aprisionam a determinados sintomas (foco na ressignificantização).
Para facilitar, a Psicanálise pode ser entendida de duas maneiras:
Uma primeira forma, a Psicanálise como uma Psicoterapia que visa a redução ou retirada dos sintomas de uma pessoa. Aqui, ela entra no crivo das avaliações de eficácia, de tempo de tratamento, de ações realizadas, de custos etc.
E uma segunda forma, a Psicanálise como uma experiência com a Palavra. Diferentemente, ela entra no crivo das considerações humanas e sociais, das implicações éticas com as palavras próprias, dos posicionamentos da pessoa diante das palavras que marcam sua vida etc.
O que é importante aqui:
Enquanto Psicoterapia, a Psicanálise tem questões a serem colocadas, porque ela tem um padecimento a ser tratado, e, sim, a depender do padecimento, a Psicanálise tem seus limites. Nesse caso, ela deve ser avaliada, entrar no fluxo das discussões das práticas psicológicas, científicas e assim por diante.
Enquanto experiência com a Palavra, a Psicanálise é ímpar em seu campo, porque permite à pessoa construir uma forma de lidar com as palavras que constituem sua subjetividade de uma maneira muito particular, na medida em que a prática do psicanalista evita dar mais significações ao paciente, esvaziando os significados das palavras para que o paciente faça algo o mais particular possível com as vivências que ele tem.
Recolocando, a Psicanálise:
Enquanto uma psicoterapia, é uma prática com teoria e técnica, eficácia comprovada para diversos padecimentos, eficiência na interação com o paciente, que deve sempre ter atualizações para se colocar melhor das discussões atuais da saúde.
Enquanto uma experiência com a palavra, é uma experiência com a linguagem particular visando reconstruir a história pessoal e a posição discursiva do paciente diante de sua vida. Nesse caso, é o que ela realmente se propõe a fazer.
Muito bom o texto, bem esclarecedor!:)
Abraço.
Que bom que o achou esclarecedor, Nayara.
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Abraço! Obrigado pelo comentário!