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Você já se perguntou por que será que existem algumas pessoas que encontramos na vida e que, mal as conhecemos, nos agradamos ou desagradamos profundamente?

O escritor e poeta norte-americano Edgar Alan Poe escreveu um conto muito interessante para pensar esse assunto, cujo título é “WilliamWilson”. O começo dele é assim: “Imaginai por um momento que me chamo William Wilson. Meu nome verdadeiro não deve manchar a página virgem que tenho diante dos olhos. Demais, tem ele sido o horror e a abominação do mundo, a vergonha e o opróbrio de minha família. Não terão os ventos indignados levado a sua infâmia incomparável até às regiões mais longínquas do globo?”

Com essa introdução, William Wilson, narrador de sua própria história, relata que sofre com algo e pretende apresentar o que lhe acontece e, para isso, retoma as memórias de sua infância na escola. Ele detalha sua escola e fala como agia com as pessoas, ação que, entretanto, não tinha peso sobre um dos colegas:
“A minha natureza ardente, entusiasta e imperiosa, deu-me um lugar distinto entre os outros rapazes e pouco a pouco, como era natural, adquiri um poderoso ascendente sobre todos os que não eram mais velhos do que eu; sobre todos, exceto sobre um. Este um era o aluno que, sem ter comigo parentesco algum, tinha o mesmo nome de batismo e o mesmo nome de família (circunstância pouco notável em si, porque o meu nome, não obstante a nobreza da origem, era um destes apelidos vulgares, que parece ter sido, desde tempo imemorial, por direito de prescrição, propriedade comum do povo). Nesta narrativa, o nome de Wilson (nome fictício, mas que não está muito afastado do verdadeiro), só o meu homônimo, entre todos os que, segundo a linguagem do colégio, compunham a nossa classe, ousava rivalizar comigo nos estudos das aulas, nos jogos e nas disputas do recreio, recusar fé absoluta às minhas asserções e submissão completa à minha vontade; em suma, contrariava minha ditadura em todos os casos possíveis. Se jamais houve no mundo despotismo supremo e sem restrição, é o que uma criança de gênio exerce sobre as almas menos enérgicas dos seus camaradas.”

O que acontece é que William Wilson encontrou certo rival e este também se chamava William Wilson. Mais que isso, eles eram nascidos no mesmo dia, tinham a mesma aparência, falavam da mesma maneira etc. William Wilson rival, era, inegavelmente, o duplo de William Wilson narrador. Algo interessante foi como Wilson narrador se incomodou com o rival:
“O meu nome de família, tão desengraçado e deselegante, e o meu nome próprio, tão trivial senão tão completamente plebeu, eram para mim, e toda a vida tinham sido, assuntos de grande desgosto. Ora, quando se apresentou no colégio, no mesmo dia da minha chegada, um segundo William Wilson, senti-me logo disposto contra ele, unicamente por se chamar assim, porque seria causa de eu ouvir pronunciar o dobro das vezes essas sílabas que me torturavam os ouvidos, porque a sua vida, em funções, do colégio, seria, muitas vezes e imitavelmente, confundida com a minha. E, por todas essas razões, desgostei-me ainda mais do nome”.

Se você se atentou bem, no começo de sua narrativa, nosso Wilson já disse que se incomodava com seu nome. Eis que, então, um colega tem o mesmo nome e, a cada vez que nosso narrador escutava, se incomodava profundamente.

Já parou para pensar o que você sentiria ou passaria se encontrasse com um duplo? É claro, dificilmente encontraremos alguém idêntico a nós, salvo os gêmeos, fisicamente falando. Contudo, sempre encontramos pessoas que tendem a cair nesse duplo conosco, ou melhor, nessa relação dual.

Sempre há chances de encontrarmos aquele colega de trabalho com quem disputamos algo, ou que basta que apareça na sala para que nos incomodemos profundamente. Há também, aquela pessoa que vemos como megera e que nos irrita tão logo abra a boca para falar o que seja. Também há o caso de achar aquela pessoa que se torna quase uma cara metade imediatamente. Entende o porquê de ser uma relação dual? Você está de um lado, a pessoa está de outro, ambos vivendo algo duplo que lhes fisga.

É muito comum escutar isso no consultório, pois os duplos existem aos borbotões. Há algo bem complexo nisso: por que será que nos apegamos ou incomodamos tão rapidamente com esses duplos? Se você acabou de chegar a um lugar e, mal conheceu as pessoas, já “sentiu” que alguém ali te incomodou ou te agradou em demasia, o que será que você sacou sem ter consciência?

Nosso William Wilson se incomodou por ter escutado outro William Wilson, tão logo ouviu seu nome. Ele desgostou do colega não por tê-lo conhecido antes, mas por ter escutado seu próprio nome, com o qual ele se incomodava profundamente. Pensando assim, entendemos que o duplo não é nosso rival por ser alguém especial, mas por encontrarmos ou supormos encontrar uma parte que não gostamos em nós mesmos ou que nos falta em sua pessoa.

O duplo, antes de ser realmente uma pessoa que nasceu nosso duplo, é aquela que, por suas características, nos apresenta algo que interpretamos inconscientemente como algo que também faz parte de nós mesmos, seja por incômodo ou por falta. Resumindo, o duplo é a nossa interpretação de que nosso incômodo apareceu fora de nós mesmos e nos ataca de frente! É um estranho familiar.
Abraço!

Este é o último texto do projeto-piloto “Psicologia, Psicanálise e Saúde Aplicadas às Artes”.

Observação: Essa publicação compõe o projeto-piloto “Psicologia, Psicanálise e Saúde Aplicadas às Artes”, realizado como uma experiência de lista de e-mails durante o período de setembro e novembro de 2016. Contém dez publicações: “Viver socialmente sem se apagar”, “O desejo humano envelhece?”, “O Inconsciente, nosso estranho familiar”, “Será que somos todos loucos?”, “Essa família é muito unida e também…“, “O que você procura no amor?”, “Apagar as memórias cura nosso sofrimento?”, “O que você sabe sobre as drogas?”, “O que você faz com a sua preguiça?”, “Será que existe um duplo seu por aí?”.

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