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Filme: Nerve - Um jogo sem regras

O filme “Nerve: Um Jogo Sem Regras”, do gênero suspense, foi lançado no Brasil dia 25 de agosto de 2016, sendo dirigido por Ariel Schulman e Henry Joost e estrelado por Emma Roberts e Dave Franco.

O enredo é o seguinte: Existe um jogo de celular chamado Nerve, que funciona no estilo “verdade ou consequência”, mas somente com as consequências, ou seja, a pessoa tem que realizar desafios. No jogo é possível escolher entre ser um Jogador, que aceita e realiza os desafios, ou um Observador, que propõe os desafios e assiste. Cada vez que um Jogador vence um desafio ele aumenta visualizações e ganha dinheiro. O jogo tem três condições: se falhar ou desistir do desafio, a pessoa está fora, e se a pessoa contar à polícia, ela terá problemas.

É nesse enredo que a trama se desenvolve. Há um grupo de amigos que participa do Nerve, e uma das garotas, a Vee, muito tímida e acanhada, é desafiada a participar como Jogadora. Ela aceita e já no primeiro desafio conhece Ian, outro Jogador, e os dois começam a receber desafios compartilhados, e isso cresce com a história.

A dinâmica do filme ficou muito boa, produzindo um estado de tensão porque os desafios criam um suspense legal. O filme integra a apresentação da realidade aumentada, que remete ao jogo Pokémon Go, com a história clássica da pessoa tímida desafiada por seu grupo social, os amigos, a realizar algo diferente. Isso é clássico porque faz parte de nossas vivências psicológicas e sociais. Quantas pessoas não passam por isso, de serem desafiadas a fazer algo contrário a como se colocam para provarem aos amigos? Talvez você seja ou conheça alguém assim.

Nós sempre esbarramos nos grupos sociais, pois precisamos deles para nos constituir e viver, mas isso tem um custo. Inevitavelmente, ou a vivência social provoca os nossos sofrimentos ou ela não consegue solucioná-los. A tecnologia não muda esse fato, ela está imersa nele.

No filme, a vida das pessoas é filmada simultaneamente pelos celulares dos Observadores, que são as pessoas que acompanham os desafios. Isso lembra as reflexões do filósofo Gilles Deleuze sobre a sociedade de controle, um funcionamento social no qual a vigilância é feita pela própria população, cada um controlando o outro com seus dispositivos eletrônicos pessoais. É impressionante pensar que agora tudo está exposto na rede digital, filmado pelo celular do vizinho, do colega, do amigo.

Esse controle exercido com o celular, ou qualquer ferramenta digital, tende a reduzir o contato interpessoal, pois as relações ficam mediadas pela virtualidade dos sistemas digitais. Já pensou que isso faz com que deixemos de assumir nossa responsabilidade pelo que falamos, como se o aparelho digital nos imunizasse? Veja o tanto de brigas nas redes sociais.

Isso cria uma estrutura perversa, não no sentido da maldade, mas no da recusa da lei social. A pessoa está imunizada atrás do aparelho e se sente autorizada a falar o que quiser, pois não há consequências. Essa situação fica evidente no filme. Tem um momento que a Vee diz “isso é um jogo perverso!”. Claro que é! Você tem Observadores escondidos que propõem desafios e estão imunes às suas consequências. É perverso por não ser alcançado pela lei. Não é a toa que no filme, o participante não pode avisar à polícia, ao representante da Lei, pois será punido pelo Nerve.

Alguns exemplos de experimentos sociais podem ajudar a pensar isso:

  • O trabalho “Ritmo 0” da artista Marina Abramovic, 1975, no qual ela disponibilizou itens diversos para as pessoas e ficou seis horas sem reagir à ação delas. Inicialmente tímido, o público começou em seguida a fazer atrocidades com ela, agindo com humilhação e violência.
  • O experimento do pesquisador Philip Zimbardo, 1971, que colocou estudantes em uma prisão atuando como guardas e presos. Já no segundo dia, havia atos de humilhação e desumanização. O experimento foi abortado pela violência emocional que provocou.
  • O experimento feito pela Universidade de Stanford, com a Teoria das Janelas Quebradas, que deixou carros abandonados em bairros de classes diferentes. No de classe baixa, o carro foi depredado e no de classe alta, não. Então, os pesquisadores quebraram o vidro do carro no bairro de classe alta e pouco depois ele estava depredado. Não foi a pobreza que produziu aquilo, mas o desinteresse e o descuido, que faz parecer não haver lei e tudo se tornar possível.

Os três exemplos ajudam a pensar no lugar dos Observadores no Nerve. Eles não são responsabilizados pelo que propõem, o que estabelece a lógica perversa. É interessante, pois é o sentido de perversão que a Psicanálise discute. O perverso não é necessariamente o psicopata que mata a sangue-frio, mas aquele que a Lei estruturante do humano não alcança e ele sabe disso, então ele continua agindo – pense em nossa política.

O perverso é bem diferente de quem costuma procurar tratamento, pois quem vem ao consultório sofre por não realizar e desconhecer seus desejos, estando muito submetido às leis subjetivas e sociais. O próprio caso da Vee no filme, que tem timidez e não consegue manifestar nada, aponta para isso, pois ela parece se sentir julgada pelo seu grupo social, então não manifesta o que deseja, pois se sente mal diante das possíveis consequências dessa manifestação.

A pergunta que surge é a de qual a nossa responsabilidade com as leis sociais e subjetivas que nos constituem, e de como lidaremos com a convivência com o outro e conosco mesmos.

O caminho interessante é o da reflexão sobre o que acontece na sociedade e conosco, se estamos conseguindo fazer acordos entre nossos desejos e as demandas sociais sem nos apagarmos, assim como sem que apagarmos os outros. Esse é uma parte da reflexão que Freud apresenta na obra O Mal-Estar na Civilização. Existe mal-estar porque, para viver socialmente, precisamos abdicar de alguns de nossos desejos, ou seja, não podemos realizar tudo. Assim, estamos submetidos à Lei subjetiva e social que nos constitui. Essa é a estrutura neurótica. A perversa é aquela que recusa a ação dessa lei social de forma alguma. Que coisa, não?

Até o próximo!
Abraço!

Observação: Essa publicação compõe o projeto-piloto “Psicologia, Psicanálise e Saúde Aplicadas às Artes”, realizado como uma experiência de Lista de E-mails durante o período de setembro e novembro de 2016. Contém dez publicações: “Viver socialmente sem se apagar”, “O desejo humano envelhece?”, “O Inconsciente, nosso estranho familiar”, “Será que somos todos loucos?”, “Essa família é muito unida e também…”, “O que você procura no amor?”, “Apagar as memórias cura nosso sofrimento?”, “O que você sabe sobre as drogas?”, “O que você faz com a sua preguiça?”, “Será que existe um duplo seu por aí?”.

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