Nesse ano de 2016 recebemos o convite para participar da “Semana Interna de Prevenção de Acidente do Trabalho” da Faculdade Multivix Vitória, realizada entre os dias 25 e 27/07. Além de nossa apresentação, também foram tratados temas sobre combate ao incêndio, saúde da mulher e do homem, atividade física e saúde, e alimentação saudável.
O convite foi feito para falarmos sobre as manifestações que ocorrem em nosso corpo na medida em que nos estressamos, que passamos por dificuldades no cotidiano da vida e do trabalho. Em função disso, construímos uma apresentação sobre o corpo, a saúde psicológica e o trabalho.
O texto da apresentação está disponibilizado logo abaixo. Segue, também, o arquivo com os slides construídos para essa fala.
Considerações sobre o Corpo e a Saúde Psicológica no Trabalho
Bom dia a todas e a todos. Agradeço ao convite realizado para fazer essa apresentação na Semana Interna de Prevenção de Acidentes do Trabalho (SIPAT) da Faculdade Multivix Vitória, que aceitei sem hesitar. A demanda que recebi nesse convite foi a de, se possível, apresentar as manifestações que ocorrem no corpo na medida em que nos estressamos, nos sentimos mal e cansados em nosso cotidiano. Esse assunto faz parte da Psicossomática em sua relação com a Saúde do Trabalhador, que é, para mim, um campo fundamental da área da Saúde: cuidar de quem trabalha.
Ao longo de minha formação, estive envolvido com a Saúde do Trabalhador: pesquisando o que os motoristas de ônibus do município de Vitória pensavam sobre sua saúde e trabalho; realizando grupos psicológicos com copeiras e cozinheiras de um hospital de Vitória e com agentes comunitárias de uma unidade básica de saúde do mesmo município; fazendo apresentação sobre a importância de pensar na saúde do trabalhador a partir de metodologias interdisciplinares; criando espaços de acolhimento e convívio entre os profissionais da unidade básica de saúde onde eu trabalhei.
No contexto de formação e profissional sempre me interessei pela área da Saúde e da Saúde do Trabalhador, principalmente porque o trabalho é uma das ações mais importantes na vida do ser humano, tanto em termos do envolvimento social quanto temporal. Passamos mais tempo trabalhando que fazendo qualquer outra coisa.
Assim, nessa apresentação falarei dos três aspectos inseridos no título proposto, sendo eles “O Corpo”, “A Saúde Psicológica” e “O Trabalho”. Proponho apresentar cada um dos aspectos para pensarmos a respeito do tema como um todo.
Para facilitar a compreensão, pensem que o Corpo, longe de ser reduzido a um objeto físico, é marcado pelos processos psicológicos e pelos processos sociais e do trabalho. É sempre no Corpo que tudo se manifesta, caso não encontre outra via mais interessante, ou mais saudável.
O CORPO
Quando procuramos o significado da palavra “Corpo” no dicionário, encontramos algumas proposições como: 1 Conjunto de elementos físicos que constitui o organismo do homem ou do animal, formado por cabeça, tronco e membros. 2 Formação anatômica, embriológica ou histológica. 3 Tudo o que tem extensão e forma. 4 A estrutura física de uma pessoa. 5 A matéria conformada que é parte da individualidade de cada ser humano ou animal. 6 A parte principal de uma estrutura arquitetônica. 7 O cadáver humano. 8 Tudo o que preenche um espaço. 9 Tudo o que tem existência física. (Dicionário Michaelis).
São várias as acepções da palavra “Corpo” mas todas elas fazem referência a um mesmo aspecto, que Corpo é uma extensão e tem uma forma. Isso faz com que facilmente entendamos que ao nosso redor, eu, vocês, as cadeiras, essa bancada, o microfone etc somos todos Corpos.
A palavra “Corpo” (do grego Soma) é posta como antagonista das palavras “Alma”, “Mente”, “Espírito” (Psique), por ser uma coisa extensa, algo que tem uma extensão, geralmente física, em oposição à coisa pensante e sem forma. O Corpo é entendido sempre como uma forma, a forma pura, daí se chamar um cadáver de Corpo. Assim, desde muito tempo o Corpo ganhou um lugar distante da Mente, do pensamento. Nas últimas décadas há várias tentativas de aproximar as duas palavras e a Psicossomática é uma delas. Entretanto, há um problema aí. Acreditamos tanto no Corpo como algo extenso e físico, separado da Mente, que não conseguimos entender que, em se tratando de seres vivos, não há Corpo sem Mente e, se houver, o Corpo também estará prejudicado ao ponto dessa Mente não se manifestar – com exceção de Walking Dead, é claro, mas vejam também o estado daqueles corpos.
Em se tratando de seres vivos, não existe Corpo sem Mente, pois é o Corpo que permite a construção do pensamento e de tudo mais que associamos à Mente. O que separa a Mente e o Corpo é mais as definições dos dois termos na linguagem que, realmente, uma possível separação entre as instâncias. Mais que isso, é por meio da linguagem que chegamos ao ponto de acreditar que estamos em um Corpo, como se pudéssemos estar em outro. Eu digo “tenho que cuidar do meu corpo” e isso dá a impressão de que existe “eu” de um lado e “meu corpo” do outro. Qual a chance disso existir dessa maneira? Só sonhando, alucinando ou tendo experiências místicas.
O que estou dizendo é que, embora histórica e socialmente, pensemos que o Corpo seja uma extensão, algo tangível e físico, ele é, na realidade, bem mais que isso, e não pode ser dissociado dessas outras realidades. Entretanto, isso não significa que nossa Mente esteja sempre em acordo com o Corpo, e é aí que está o desafio de estudo da Psicossomática. Para pensar a respeito, remeto-lhes a um trecho do livro “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis:
“Ora, enquanto eu pensava naquela gente, iam-me as pernas levando, ruas abaixo, de modo que insensivelmente me achei à porta do hotel Pharoux. De costume jantava aí; mas, não tendo deliberadamente andado, nenhum merecimento da ação me cabe, e sim às penas que a fizeram. Abençoadas pernas! E há quem vos trate com desdém ou indiferença. Eu mesmo, até então, tinha-vos em má conta, zangava-me quando vos fatigáveis, quando não podíeis ir além de certo ponto, e me deixáveis com o desejo a avoaçar, à semelhança de galinha atada pelos pés. Aquele caso, porém foi um raio de luz. Sim, pernas amigas, vós deixastes à minha cabeça o trabalho de pensar em Virgília, e dissestes uma à outra: ‘Ele precisa comer, são horas de jantas, vamos leva-lo ao Pharoux; dividamos a consciência dele, uma parte fique lá com a dama, tomemos nós a outra, para que ele vá direito, não abalroe as gentes e as carroças, tire o chapéu aos conhecidos e finalmente chegue são e salvo ao hotel’. E cumpristes à risca o vosso propósito, amáveis pernas, o que me obriga a imortalizar-vos nesta página”. (Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis, Capítulo LXVI, As Pernas).
Como é possível que o personagem pudesse pensar em uma coisa e fazer outra sem se atentar ao que estava fazendo? Podemos dizer que o Corpo e a Mente estão sem dialogar? Na realidade, o pensamento está funcionando no mesmo Corpo que caminha. Nesse caso, encontramos uma suposta cisão entre dois atos, pensar e andar, o que não significa que tenhamos uma cisão entre a Mente e o Corpo. O que temos, de fato, é uma proliferação de funcionamentos, todos eles no Corpo, alguns dos quais relacionados ao andar e outros relacionados ao pensar, mas ambos acontecendo no mesmo Corpo. A cisão não está entre a Mente e o Corpo, mas entre diferentes funcionamentos simultâneos, alguns nomeados como Corpo, outros como Mente, e assim por diante.
O Corpo não se reduz ao seu aspecto físico, nem ao campo do visível; é um conjunto de processos funcionando simultaneamente, de maneira complexa, recebendo nomes diferentes de acordo com a cultura. É por isso que podemos dizer que é com o mesmo Corpo que sofremos a tristeza da perda de um ente querido, que nos alegramos ao ler um texto bonito na internet, que nos sentimos tensos durante um assalto, que fazemos o contato com o outro, que trabalhamos e assim por diante.
Portanto, o Corpo é mais amplo que a fisiologia dos órgãos e dos sistemas internos ou das camadas da nossa pele. Essa é, de fato, a parte extensa dele, a parte física e tangível, mas ele a ultrapassa. O Corpo é uma instância que vivência afetos incompreensíveis, raciocínios permeados pela linguagem, processos imaginários muitas vezes diferentes do visível, relações de poder entre as pessoas. É fácil entender isso quando nos remetemos a alguém que experimenta um sentimento de angústia profunda diante da certeza da morte; que olha no espelho e se vê completamente diferente do que é; que sofre para tentar dormir, fritando na cama de um lado para o outro tentando parar de pensar; tem o sentimento de abuso que se sente diante do machismo e do racismo.
Essas são vivencias que costumeiramente chamamos de psicológicas, e elas são, mas embora sejam psicológicas, elas são corpóreas, pois é no Corpo que vivenciamos todos esses sofrimentos. Não há vivência psicológica desatrelada do Corpo, que não é somente o físico ou a fisiologia, e sim a própria sede de todas as vivências biológicas, psicológicas e sociais que temos; é nele que estão todas as marcas, quer lembremos ou não. Mais que isso, não é no Corpo que sentimos as coisas, mas com ele, pois não há como sentir ou vivenciar algo em outro lugar que não no Corpo que somos, e não no Corpo que temos – pensem na impossibilidade, até então, de ter outro Corpo que não este. Isso significa que o Corpo é passível de ser moldado, controlado, manipulado, interferido, libertado em seu funcionamento por meio do raciocínio, do treino, da imposição, do diálogo e assim por diante, tanto para produzir sofrimento quanto para produzir bem-estar.
Peço que me auxiliem com uma experiência simples para pensarmos a respeito do corpo. Por favor, ergam uma das mãos e mantenham-na erguida até eu pedir que parem, eu participarei com vocês.
Há um aspecto interessante em relação ao Corpo porque, nesse momento, vocês estão seguindo um comando e sentindo os efeitos que a realização desse comando produzi em vocês. Ouvimos o comando com o Corpo, decodificamos esse comando por fazermos parte dessa realidade contextual e discursiva com o Corpo, respondemos a esse comando com o Corpo, sentimos os efeitos disso com o Corpo. O Corpo está implicado em todo o processo, mesmo que a compreensão e a decisão de acatar o comando envolvam também processos psicossociais. O Corpo está sempre implicado em tudo o que fazemos. Tirem o Corpo e sequer teremos um espírito vagando.
Provavelmente, com a mão erguida, vocês estão sentindo formigamento, desconforto e incômodo, pensando em abaixar a mão, porém, mantendo-a erguida em função do pedido. Agora podem abaixar as mãos, agradeço por terem participado comigo. Essa pequena experiência serve para falar sobre o lugar do Corpo no processo social e, também, em como a conformação que nos damos, a maneira como nos posicionamos, interfere bastante em como sentimos. Essa reflexão caminha para o campo da Ergonomia, que vocês devem conhecer. Podem abaixar as mãos, obrigado.
A ergonomia estuda as interações das pessoas com os contextos nos quais elas estão inseridas, pensando na melhor maneira de se posicionar, de facilitar essa interação não prejudicando tanto nossa saúde. Há uma busca pelo melhor conforto possível pois, se não há conforto, há sofrimento que se experimenta nesse Corpo que é fisiologia, afetos e pensamentos. Não é sem evidências a importância de realizar alongamentos e após longo tempo de trabalho sentado, pois o movimento é fundamental para que não nos prejudiquemos. Pensem na pessoa acamada que apresenta escaras por manter-se na mesma posição por tempo prolongado.
A possibilidade de se reposicionar é essencial para a vida. No exemplo do braço erguido, é o fato dele estar parado que provoca as diversas reações. Entretanto, se estivéssemos mexendo o braço ininterruptamente, também sentiríamos mal-estar. Então, não é o movimento puro que é interessante, mas a possibilidade de se reposicionar, de fazer um movimento para encontrar uma posição diferente. É o intervalo que o reposicionamento realiza que faz a grande diferença.
Isso faz com que consigamos não sofrer demais, porque tanto estar parado quanto estar agitado provoca efeitos no Corpo, fisiológica, psicológica e emocionalmente, isso que corresponde aos campos da Psicofisiologia e da Psicossomática. Por que será que quando entramos em pânico temos a reação de embrulho no estômago? Mesma reação que temos quando comemos uma comida estragada e temos que vomitá-la, embrulho no estômago. Sensação parecida que temos quando vemos a garota ou o garoto de nossos sonhos, embrulho no estômago.
A psicossomática estuda o desacordo entre os diferentes processos psicológicos e emocionais que, por não entrarem em consenso, aumentam a tensão psíquica e corpórea, ou seja, aumentam a tensão muscular, a pressão interna por se preparar constantemente para algo sem resolver o problema em si. Nesse caso, falamos inclusive do estresse. O que é interessante é que: se fizermos relaxamento, temos melhora; se fizermos alguns exercícios bruscos, temos melhora; se descansarmos, temos melhora; se mudarmos nossa alimentação, temos melhora; se falarmos a respeito, temos melhora. Tudo isso produz mudanças em função dos reposicionamentos – mude a posição, provoque mudanças.
A liberdade para se reposicionar no momento que você acha interessante é o que permite a mobilidade da vida. É essa liberdade de mudar de posição que nos dá condição de não desgastarmos tanto o Corpo e os diversos sistemas que funcionam nele, com ele e em função dele, considerando-o como corpo fisiológico, afetivo, de raciocínios e político. Esses termos auxiliam a pensar o fato de que o Corpo não está separado do psiquismo nem das relações sociais. Sem um Corpo, não há nada disso.
Para resumir, entendamos que o Corpo pode ser visto de maneira diferente pela medicina, pela nutrição, pela educação física, pela psicologia, pelas ciências sociais e políticas, mas sempre é um só Corpo, não o nosso, mas nós mesmos.
A SAÚDE PSICOLÓGICA
O campo da Saúde Psicológica ou da Saúde Mental em geral trabalha com o corpo tomado a partir do viés psicológico, considerando as manifestações psíquicas e emocionais que temos. Não há uma definição específica ou oficial do que seria a Saúde Mental, mas existem algumas ideias, dentre as quais encontramos:
Saúde mental é o equilíbrio entre o patrimônio interno e as exigências ou vivencias externas. É a capacidade de administrar a própria vida e as suas emoções dentro de um amplo espectro de variações sem contudo perder o valor do real e do precioso. É ser capaz de ser sujeito de suas próprias ações sem perder a noção de tempo e espaço. É buscar viver a vida na sua plenitude máxima, respeitando o legal e o outro (Dr. Lorusso);
Saúde mental é estar de bem consigo e com os outros. Aceitar as exigências da vida. Saber lidar com as boas emoções e também com as desagradáveis: alegria/tristeza; coragem/medo; amor/ódio; serenidade/raiva; ciúmes; culpa; frustrações. Reconhecer seus limites e buscar ajuda quando necessário.
A Saúde Mental caminha no sentido do ser humano conseguir lidar com as situações cotidianas de maneira tal que não se sinta aprisionado e sem saída diante do que vive, e que possa, na medida de suas possibilidades, lidar com as dificuldades que a vida apresenta. Ao contrário, o que acontece quando não conseguimos lidar com a vida? Sentimo-nos presos, parados, mórbidos, sem saída e assim por diante, situação próxima ao exemplo de manter o braço na mesma posição ou de movimentá-lo sem parar até cansar. A mesma ideia do movimento aparece aqui. Se não conseguimos encontrar uma forma de nos reposicionarmos diante do que vivemos, também psicologicamente, seja nos nossos pensamentos, sonhos e ideais, nos aprisionamos e padecemos.
Digamos que haja três tipos de não-permissões que produzem padecimentos psíquicos como ansiedade, estresse e angústia. As proibições são as relacionadas ao que é não-permitido pensar, não-permitido dizer e não-permitido realizar. Nas três situações, não nos permitimos ou não nos permitem manifestar algo, seja em pensamento, em fala ou em ato. A proibição geralmente engessa, aprisiona e enrijece a posição que estamos vivendo, inclusive psicologicamente.
Essas não-permissões podem acontecer em todo tipo de situação: na relação com o namorado ou com o marido, que cria uma atmosfera de proibição e segredo excessivo; no contexto de um bairro violento, pelo sentimento de insegurança e de impunidade; na relação com o pai ou a mãe que nunca permitiu a um filho pensar sobre determinada situação; na relação com um chefe que não permite que você exerça suas potencialidades. Escutamos no consultório e nos serviços de saúde pessoas com tem medo de expor algo para seus entes queridos, que se sentem pressionadas no trabalho, que se proíbem de falar de determinado assunto ou mesmo de pensar a respeito.
A Saúde Psicológica é aquilo que funciona entre duas instâncias, o Corpo e a Sociedade, de forma que se não há realização no ambiente social, há manifestações no Corpo que carrega as tensões acumuladas. Por estranho que pareça, o tratamento para melhorar a Saúde Psicológica é feito por meio de uma nova interação, com o psicólogo, por exemplo, que permite um posicionamento diferente da pessoa no contexto que ela vive, na forma de pensar uma situação, e isso alivia o peso das exigências sobre o Corpo. É sempre no Corpo que tudo se manifesta, caso não encontre outra via mais interessante, ou mais saudável.
Cabe, aqui, um porém. O pensar, o falar e o agir são formas de agir em condições diferentes. O pensar é um agir virtual, pois não escutamos, nem expomos, nós visualizamos como imagem mental. O falar é um agir contextual por meio de palavras que dão sentido à realidade. O agir é o conjunto geral de todos os processos que realizamos com o Corpo. Notem que pensamos com o Corpo, falamos com o Corpo e agimos com o Corpo. Ele está implicado em todos os processos. Talvez a única ação verdadeiramente diferente seja o Falar, pois ela ultrapassa o Corpo por meio da Linguagem, que é praticamente outro corpo, um corpo simbólico.
Tudo que se manifesta no Corpo por não ter se manifestado pelo pensar, falar ou fazer, por ter sido proibido de alguma forma, considerando os estudos de Psicossomática, é chamado de Somatização ou Conversão, ou seja, a transformação de um processo psíquico em um processo somático. Mas a Conversão não é exatamente assim. Não há um processo psíquico que vira um processo somático, como se as duas instâncias estivessem separadas, mas sim, um processo que está acontecendo na mesma medida em que os outros estão, entretanto, como ele não é posto em ato seja pensando, falando ou fazendo, o Corpo continua mantendo sua tensão e produz sofrimento.
Ter a possibilidade de se reposicionar diante do que estamos vivendo, encontrando saídas para os problemas que surgem na vida, é o meio de construirmos uma boa Saúde Psicológica. Onde entra o Corpo nessa história? Ele é o depositário de tudo o que não resolvemos, simplesmente por ser ele aquilo que somos, e se não resolvemos em algum lugar, pensando, falando ou fazendo, é nele que sentiremos.
Por fim, uma última consideração sobre a Saúde Psicológica: de forma alguma ela é sinônima de felicidade. Embora a Saúde Psicológica esteja relacionada ao bem-estar, esse bem-estar não é um estado constante e imutável. A vida é feita de experiências e nessas estão incluídas as alegres e as tristes. Saúde Psicológica não é, portanto, forçar a felicidade, mas lidar com o fato de que há momentos alegres e tristes e que se pode vivenciá-los de maneiras diferentes.
O TRABALHO
O último tema dessa exposição é o Trabalho. Diferentemente do Emprego, que passou a existir a partir do século XVIII com a industrialização, o Trabalho existe com a própria humanidade.
O trabalho é uma ação humana que transforma a realidade, independentemente de existir emprego. É uma Atividade, um Ato, um Fazer. No trabalho está implicado o Corpo que age para modificar o uso de um objeto, construindo um uso cultural. Ao pegar um pedaço de madeira e acoplar folhas secas fazemos uma vassoura para varrer o quintal. Transformamos objetos da natureza em objetos culturais e interferimos na realidade. O microfone, as cadeiras, o ar condicionado, o auditório, o quadro e os pilotos, comida quente, salas varridas, leite condensando, computadores, registros. Tudo isso envolve trabalho, pois trabalhar é interferir na realidade, transformando-a.
Essa definição de trabalho está muito próxima da brincadeira infantil, tem um teor de criatividade em jogo, pois é isso o que envolve o essencial do trabalho, da Atividade, ter criatividade para transformar a realidade em outra coisa e viver socialmente. Nesse sentido, todo trabalho tende a produzir bem-estar, porque trabalhar é transformar as coisas, e isso produz satisfação. E mais, pensando dessa forma, não há trabalho que seja melhor que o outro, pois todos são fundamentais para a vida humana.
Entretanto, essa não é a única definição do que é o Trabalho, pois, embora ele seja algo tão antigo quanto nossa espécie, sua forma de compreensão modificou consideravelmente. A palavra “Trabalho” veio do latim “Tripalium”, que é a união de “tri” (três) com “palum” (madeira), que foi o nome dado a dois tipos de instrumentos, o de socar o trigo na lavoura, e o de torturar escravos – esse último, mais conhecido. Por muito tempo, o Trabalho foi associado a uma tortura e isso manteve-se ao longo de diversas épocas, sendo modificado principalmente após a industrialização.
Tripálio[1] (em latim: Tripalium) era um instrumento feito de três paus aguçados, algumas vezes ainda munidos de pontas de ferro, no qual os agricultores bateriam o trigo, as espigas de milho, para rasgá-los, esfiapá-los. A maioria dos dicionários, contudo, registra tripálio apenas como instrumento de tortura, o que teria sido originalmente, ou se tornado depois.
Tripálio (do latim tardio “tri” (três) e “palus” (pau) – literalmente, “três paus”) é um instrumento romano de tortura, uma espécie de tripé formado por três estacas cravadas no chão na forma de uma pirâmide, no qual eram supliciados os escravos. Daí derivou-se o verbo do latim vulgar tripaliare (ou trepaliare), que significava, inicialmente, torturar alguém no tripálio.
É importante entender que a noção de Emprego não existia no momento em que o Trabalho era um instrumento de tortura, pois os torturados eram os escravos, pessoas que tinham alguma dívida ou cometiam algum erro. Na antiguidade, os impérios egípcios, romanos, gregos funcionavam na base da escravidão. Passando da Antiguidade para a Idade Média, construiu-se uma relação de servidão no Feudalismo, com a proteção do senhor feudal dado aos servos que moravam nos feudos e trabalhavam para o senhor. O Feudalismo deu lugar ao Mercantilismo, que se desenvolveu com a industrialização, e culminou nos avanços da Modernidade, e enfim a Contemporaneidade. Foi entre a Modernidade e o Contemporâneo, do século XVIII para cá, que o Emprego se constituiu, juntamente com os sindicatos, os direitos dos trabalhadores e assim por diante.
Diferentemente do Trabalho, que é uma ação que transforma uma realidade, o Emprego é um contrato social por meio do qual alguém se apropria da força de trabalho de outrem, pagando-lhe por essa apropriação, ou seja, você faz o seu Trabalho e alguém te paga por isso. Temos aí a lógica do Emprego e da Empregabilidade.
Todos nós somos capazes de trabalhar, de agir transformando a realidade, entretanto, essa lógica é modificada em função das exigências de cada um dos empregos que nos são ofertados. Isso não impede que alguém não possa trabalhar sem ter um emprego, sem ser empregado de outrem, mas vivemos sob uma lógica que nos diz que o melhor é ter a segurança e a estabilidade do Emprego, e isso nos lança na relação entre a liberdade e o risco de trabalhar autonomamente e a segurança de trabalhar empregado. É nesse contexto que fatores como carga horária, salário, funções, cargo etc, foram organizados, estabelecidos e acordados entre patrões e funcionários.
A relação Funcionário-Patrão da atualidade está posicionada em uma referência distante à relação entre Servo-Senhor Feudal na Idade Média e à relação Escravo-Escravizador na Antiguidade. O que mudou ao longo das épocas? Mudaram aspectos como a consideração dos direitos humanos e direitos dos trabalhadores, a industrialização e a forma de exercer o trabalho, a comunicação entre as pessoas. Se não existissem os direitos humanos e os direitos dos trabalhadores, construídos à custa de movimentos sociais, provavelmente estaríamos vivenciando uma época de formas servis e escravocratas de trabalho. O Emprego, de certa forma, tem sido a maneira mais saudável de estabelecer essa relação “quem trabalha x quem recebe o trabalho”, em comparação às formas que existiram anteriormente na humanidade.
O que está em questão diante dessa realidade é como construir vivências saudáveis e qualidade de vida no trabalho considerando o contexto de Empregabilidade que vivemos no país, articulando o caráter produtivo de trabalhar, o aspecto desgastante que ele pode promover, as relações de trabalho existentes nos empregos e a necessidade de dinheiro para viver. Tal como nos tópicos anteriores, ter a liberdade para encontrar posições diferentes no Trabalho também aumenta a possibilidade de ser mais saudável.
Alguns acontecimentos recentes podem auxiliar a pensar no que tem acontecido em nossa Sociedade, pois, o que é importante considerar é que, em se tratando do contexto trabalhista, é a relação entre Trabalho e Emprego que está sendo posta a todo tempo. Algumas propostas atuais do governo interino incluem reduzir a hora de almoço para 30 minutos, postergar a aposentadoria para os 75 anos, reduzir os benefícios de aposentadoria por invalidez, aumentar a carga horária semanal para 60 horas. Todas essas propostas estão relacionadas ao Emprego e à empregabilidade e não exatamente ao Trabalho.
Uma situação que facilite compreender melhor essa relação entre Trabalho e Emprego está no trabalho das empregadas domésticas e de como atualmente tem-se discutido sobre sua formalização, com carteira assinada e benefícios. Tínhamos, até bem recentemente no país, um Trabalho realizado com base da servidão, sem o funcionamento do Emprego. Embora fossem chamadas de empregadas domésticas, as funcionárias não tinham todas as condições relacionadas à empregabilidade, e tinham que realizar seu Trabalho sem o suporte dos direitos sociais. Na maioria das vezes, eram mulheres de classe econômica baixa, negras, sem estudo, muitas das quais morando na casa dos patrões, longo da família.
A empregabilidade é como acontecerá o jogo de relações entre os funcionários e os patrões, entre quem trabalha e quem paga por esse trabalho. Sempre que, ao realizarmos nosso Trabalho, formos obrigados a fazê-lo e expropriados do prazer que ele produz por conta das cobranças e dos excessos, esse Trabalho se tornará o antigo Tripalio, instrumento de tortura. Quando vivenciamos o Trabalho como um instrumento de tortura e nos sentimos presos em realizar qualquer ação, seja pensando, falando ou fazendo, atingimos o Corpo que somos, e voltamos ao ponto central dessa apresentação, de que o Corpo é o depósito de tudo que não é realizado em nossa vida, pois, se não encontramos saída, não sentimos a liberdade de nos posicionarmos diante do que vivemos.
CONSIDERAÇÕES
Agora que apresentamos os contextos sobre cada uma das instâncias, podemos caminhar para nossas Considerações sobre o Corpo e a Saúde Psicológica no Trabalho, que serão colocadas como apontamentos importantes. Assim, tendo por base essa explanação é importante considerarmos que:
O Corpo é a materialidade que permite a existência de tudo o que somos. Sem ele não há possibilidade de existência do pensamento e da Mente. Nele estão coexistindo múltiplos sistemas que incluem os aspectos fisiológicos, emocionais, psicológicos, sociais e políticos. Ele é o depositário de todas as manifestações irrealizadas quando não exteriorizamos o que estamos passando.
Não temos um Corpo, somos um Corpo.
Se pensarmos o Corpo somente em seu aspecto fisiológico, teremos dificuldade para pensar que ele também manifesta sintomas de conversão e somatização.
Não existe uma forma única e específica de melhorar a saúde do/no Corpo, o problema é não conseguir realizar nenhuma ação e sentir-se aprisionado e sem saída.
O cuidado com nós mesmos envolve diversas ações como fazer relaxamento, praticar esportes, modificar a alimentação, ter horário de descanso, falar a respeito, contanto que estejamos cientes de que é a mudança de posição diante da vida que nos permitirá melhorias.
Não é o movimento que possibilita a melhoria das condições de saúde, mas a possibilidade de se movimentar, a liberdade para fazê-lo no momento que achar interessante.
A Saúde Psicológica é sentida no Corpo se conseguimos lidar razoavelmente bem com as situações da vida.
O Sofrimento Psicológico é vivido no Corpo, pois nele tudo se manifesta caso não encontremos outra solução, principalmente quando estamos diante de não-permissões sobre o nosso pensar, falar e fazer.
Pensar, falar e agir são ações que realizamos com o Corpo em circunstâncias diferentes, mas são todas ações. Das três, falar e agir envolvem o caráter de exteriorização, que reduz a tensão psicológica, emocional e fisiológica. Entre elas, falar tem uma característica ainda mais singular devido ao uso da Linguagem, por seu caráter simbólico e sua possibilidade de dar sentido à realidade.
A Saúde envolve necessariamente a liberdade para se reposicionar diante das vivências cotidianas, sejam elas relacionadas ao Corpo, ao Psiquismo ou às relações Sociais e do Trabalho. A liberdade que está em questão não é a de fazer qualquer coisa que der na telha, mas ter a chance de dialogar e fazer novos acordos, encontrar e realizar novas saídas, não se sentir proibido de pensar, falar ou fazer algo por determinação própria ou de outrem.
Trabalho e Emprego são situações diferentes mas extremamente interligadas. O Trabalho é uma Atividade que permite transformar a realidade, e o Emprego é uma relação de venda da força de Trabalho para alguém que pode pagar por ela.
O Trabalho envolve a criatividade e o prazer da ação de produzir, mas se for forçado e obrigado, se envolver humilhação e desrespeito, se não houver consideração pelo trabalhador, ele se torna um instrumento de tortura.
O Emprego é, comparado com outras épocas, a maneira mais saudável de se colocar em relação quem Trabalha e quem Recebe o produto do Trabalho. O que está em jogo é como um poderá exercer o ato criativo do Trabalho sem se sentir torturado por aquele que Paga por seu Trabalho.
Um Emprego que se preocupa com seu funcionário-trabalhador considera os fatores relacionados à qualidade de vida no trabalho, tais como sua carga horária, o salário, os benefícios, o potencial de desenvolvimento, dentre outros fatores.
O Corpo será sempre, em todas as situações, como a vida cotidiana, a relação consigo próprio, as interações sociais ou trabalho, o depósito de todas as proibições e não-permissões que sentirmos, sejam elas aplicadas por nós mesmos ou pelos outros, caso não encontremos outra via mais interessante, ou mais saudável de exteriorizá-las e de resolvê-las.
Agradeço mais uma vez pelo convite para participar dessa SIPAT e espero que a apresentação tenha servido como mote para pensar sobre cada um de vocês, assim como sobre esses três assuntos tão importantes, que são o corpo, a saúde psicológica e o trabalho.