Clicky

O que você entende por saúde? Há cerca de vinte anos havia uma ideia na zona rural, de que os fortinhos eram saudáveis, e os magrinhos nem tanto. Bem alimentado era sinônimo de boa condição de saúde. Juntamente com ela, também havia a de que o corpo humano é igual a um carro: enquanto não faz barulho, está saudável. Isso lembra até uma frase do cirurgião francês René Lerich, que disse que “a saúde é a vida no silêncio dos órgãos”. No entanto, isso não é suficiente para resolver a questão do que é saúde, ou do que é ter saúde, e isso coloca algumas implicações quanto às ideias que se tem sobre a saúde e das práticas realizadas em função disso, ou, das práticas que as pessoas realizam visando a saúde e os conceitos que podem ser apreendidos delas – já que, não necessariamente, as pessoas tem uma ideia de saúde na cabeça, embora pratiquem.
Saindo dessas concepções individuais, por muito tempo prevaleceu uma ideia de saúde como sendo aquilo que não fosse doença. Essa ideia é a de que a saúde é a ausência da doença, em oposição, ou seja, é preciso tratar a doença, e não a tendo, se está saudável. Não há, portanto, preocupação quanto à promoção de saúde, mas de extirpação da doença. 

Tentando modificar essa perspectiva durante o século XX, principalmente devido aos efeitos das grandes guerras, a Organização Mundial da Saúde (OMS), em 1946, estabeleceu o conceito de saúde como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade.”, mobilizando os países no trabalho de construção de políticas de saúde voltadas à sua concretização. Isso não é fácil, contudo. Duas das críticas ao conceito da OMS, feitas pelo psicanalista francês Cristopher Dejours [lê-se Cristofer Dejurs – com biquinho], são as de que não é possível trabalhar com um conceito que se pretende uma saúde “completa” entre três âmbitos, entendida ainda como um “bem-estar”, que é um termo vago, não diretamente manejável. A partir do momento em que se define a saúde como um completo bem-estar entre três aspectos (físico, mental e social), expande-se o conceito e tem-se a obrigação de produzir saúde em três níveis, um desafio e tanto. Como seria possível a proeza de produzir um completo bem-estar no físico, na mente e no social? [A OMS continuou discutindo essa questão em diversas Conferências de Saúde, produzindo Cartas e Relatórios sobre Saúde e Promoção da Saúde]. 

De qualquer forma, não há que se tomar o conceito da OMS como uma obrigação para a população, mas para os serviços de saúde, visando a construção de políticas de saúde que se aproximem ao máximo do que é almejado, pois chegar nele é impossível – deixa de ser um conceito a ser realizado e passa a ser um conceito a tentar ser alcançado, uma bandeira de luta. Em sua crítica, feita em 1986, Dejours propõe uma alternativa ao conceito da OMS, e diz que saúde, ao invés de ser “o completo bem-estar físico, mental e social”, é “ter meios de traçar um caminho pessoal e original, em direção ao bem-estar físico, psíquico e social”, ou seja, no lugar de saúde enquanto posse a ser alcançada, saúde é o processo de se tentar alcançar – sai do estado e vive-se o processo. Bem diferente.

Cristopher Dejours

Mas essas não são as únicas concepções do que é saúde. Além disso, deve-se considerar que elas colocam a saúde como algo idealizado, tendo-a ou traçando caminhos para tê-la. Qual o problema com o ideal? É que, além de inalcançável, é massificado – ou você tem igual, ou você não tem. Isso te toca de alguma forma? O que você pensa a respeito?
Aqui faz-se um encerramento. Parando nesse ponto, você tem a saúde como ausência de doença, como o estado de completo bem-estar físico, mental e social, e como a possibilidade de traçar o caminho em direção ao completo bem-estar físico, mental e social. Veja se eles não te interessam e se articule aí. Agora, caso queira continuar, o texto segue. Tem mais coisa pelo caminho, contudo, ficará mais complicado.

Georges Canguilhem

Na tese de doutorado “O Normal e o Patológico”, de 1943, George Canguilhem [lê-se George Canguilham], médico e filósofo francês, faz uma discussão sobre a relação entre o que é normal e o que é patológico. Ele empreende uma análise dos conceitos de “normal”, “anormal”, “anomalia”, “média”, “saúde”, “doença” com o intuito de diferenciá-los e delimitar seus campos próprios, tendo em vista que eles passaram a ser relacionados ao longo da história. Indo direto ao ponto, pela análise de Canguilhem, tem-se que, etimologicamente: 1) O termo “normal” é entendido como “aquilo que produz novas leis”. É normativo enquanto produção de leis, construção de normas. Normal é o fato de que todo organismo tem normas, pois as normas são aquilo que regulam a relação do organismo com a vida. Um cavalo terá sempre quatro patas, praticamente todo pássaro voará, o homem terá um polegar opositor etc. Ninguém colocou as normas, elas são abstrações das relações do organismo com o ambiente.

2) O termo “média” provém da estatística, referindo-se ao padrão comum de acontecimento de uma determinada variável. A média é o cálculo em que se soma todos os aparecimentos de uma variável e divide-se pela quantidade de aparecimentos: Para se dizer que a pressão arterial média é de 12 por 8, medem-se diversas pressões e dividem-nas pela quantidade de pressões medidas. Contudo, o termo “normal”, que diz respeito a uma capacidade de construção de normas, foi historicamente associado ao termo “média estatística”, construindo um termo novo, “normal enquanto média, que se torna o valor ideal que representa as diferentes normas”. Essa união bastante delicada entre um termo normativo (de produção de leis e normas) e um termo estatístico (de padrões médios de uma variável) tornou o normal o que é médio, e o contrário de médio foi tratado como anormal, e aí está outro problema:

3) O termo “anormal” não existe enquanto contrário de “normal”, termo normativo, porque não existe algo que não tenha leis e normas. O que está fora da norma (suposto anormal) está sem interação com o ambiente. Enquanto o termo normal diz respeito à construção de leis/normas, como poderia haver algo em que não haja lei/norma? Assim, não existe o termo “anormal” enquanto contrário de “normal”, normativo. Ele só existe porque “normal” foi tomado como “médio”, pois existe aquilo que não é médio.

4) O termo “anomalia” provém da geologia e diz respeito às irregularidades existentes em uma formação geográfica. Nesse caso, por ser um termo geológico, ele não diz respeito a coisas positivas ou negativas, mas a diferenças no terreno. Assim, o que é anômalo é irregular (sem regularidade), é diferente. Entretanto, o termo “anomalia” foi associado ao termo “anormal”, passando a ser o contrário do termo “normal”, que foi associado ao termo “média estatística”.

O que foi acontecendo?

 Como o normal virou sinônimo de média, e como a anomalia virou sinônimo de anormal, oposto suposto de normal, tem-se que aquilo que é médio é normal, e aquilo que é anômalo é anormal.
De que maneira essas associações confundiram o que é a saúde e a patologia?
 A saúde foi associada ao normal e à média, enquanto a doença foi associada à anomalia e ao anormal. Dessa forma: é saudável quem é normal, que é médio; é doente quem é anômalo, que é anormal. Talvez você tenha ficado confusa(o), mas então você pergunta ao seu amigo ou à sua amiga, “E aí, como você está?”, e ele/ela te responde “Estou normal!” Olhe aí, de qual normal se fala se não esse normal que seria: “Estou a mesma coisa de sempre, nada mudou, nada está diferente, de forma que não me entendo como doente, mas como saudável, porque estar saudável é isso que tenho estado diariamente”. Analisando esse uso do termo normal, o que é possível dizer? Quando eu digo que estou normal, quando estou o mesmo de sempre, o que faço é relatar a permanência de um estado que tem me acompanhado diariamente. Se esse estado é modificado, eu não estou mais normal, “saudável”, estou ficando anormal, “adoecido”. Assim, o adoecimento foi virando a perturbação do estado normal associado à saúde, seu oposto. Tomando a questão dessa forma, independentemente do que se está passando, ainda que o conceito de saúde mude, continua-se tratando a saúde como o contrário da doença. De qualquer maneira, seja pela OMS, por Dejours, ou vivendo a vida sem conhecer os conceitos de saúde, toma-se a saúde e a doença como contrários, e isso dá margem à realização de um conjunto de práticas complicadas associadas à existência de qualquer perturbação que se realize no funcionamento do indivíduo. Achou estranha a conclusão?
O que acontece quando você começa a sentir aquela dorzinha de cabeça? Remédio imediatamente, antes que isso piore.
E aquela dificuldade para dormir? Remédio imediatamente, antes que passe a noite toda.
Tristeza por ter terminado o relacionamento? Depressão, resposta medicamentosa imediatamente.
Gordurinha aumentando no quadril? Academia ou cirurgia, imediatamente.
Qualquer sofrimento: Ação imediata para resolução da situação.
Quanto mais se desvia de certa normalidade do que se entende por saúde, sente-se adoecido e, portanto, busca-se um tratamento. Isso de fato é importante para alguns padecimentos, no entanto, não é suficiente para tratar outros processos. Daí se nota a busca incessante por evitar o sofrimento, pela manutenção de um corpo perfeito, pela redução drástica dos níveis sanguíneos que podem vir a provocar mal-estar, o aumento de intervenções no corpo por meio de cirurgias, o uso abusivo de medicamentos para tudo quanto é situação entendida como diferente etc. [Essa é a análise do problema por uma perspectiva. Claramente, existem outras formas de entender porque tem-se feito maiores intervenções no corpo e fuga do adoecimento]. Não se parou de tratar a saúde como ausência de doenças, mesmo com o conceito da OMS. Nunca se deixou de colocar as duas como opostas, buscando um nível médio de vida que é aquela coisa regular, comum, sempre a mesma – normal, na associação errônea dos termos –, medíocre.
[Curiosidade: me.dí.o.cre adj (lat mediocre) 1 Médio ou mediano. 2 Meão. 3 Que está entre bom e mau.4 Que está entre pequeno e grande. 5 Ordinário, sofrível, vulgar. sm 1 Aquele que tem pouco talento, pouco espírito, pouco merecimento. 2 Aquilo que tem pouco valor. – Dic. Michaelis]
Quando alguém diz que está “normal”, o que se pode pensar senão “Que vida é essa que não muda nada?”, “O que é isso que fica sempre a mesma coisa?”, “Será que todo dia essa pessoa vive exatamente a mesma rotina que não permite mudanças?”. [Ok, há pessoas que dizem que tudo está normal para não ir muito longe em sua resposta, há de se considerar isso].
Quase lá!
Ao empreender sua análise, Canguilhem propõe uma redefinição dos conceitos de saúde e de doença, já não mais tão atrelados às médias estatísticas, afinal, ninguém vive uma média – embora elas sejam necessárias para a consideração e realização das políticas públicas de saúde, são insuficientes para dar conta dos processos da vida, a não ser por enquadramento. Canguilhem disse que a saúde e a doença devem ser consideradas a partir do termo “normal”, mas sem os termos média, anomalia e correlatos.

O que tem aí?

O que é o normal? Normal é a produção de novas normas, é aquilo que diz respeito à produção de leis. Associado ao funcionamento do organismo, normal é o fato de que este organismo tenha sempre a possibilidade de construir novas normas na interação com o ambiente, seja lá qual for, interno/externo, biológico, mental, social. Esse normal, Canguilhem o associou aos conceitos de saúde e doença, que passam a ser então capacidades normativas, ou seja: a capacidade do organismo de construir novas normas (mais: saúde; menos: doença). Isso é interessante: Saúde não é um estado que se alcança, não é algo que se passa a ter, é a capacidade de se modificar de acordo com as interações. Onde está a doença, então? A doença, alguns podem pensar, seria a incapacidade de construir novas normas. Assim, a doença continuaria como o contrário da saúde. Porém, em Canguilhem, a doença passa a ser a redução da capacidade de produzir novas normas, pois não é possível não ter normas, embora haja normas prejudiciais. Dessa forma, a saúde não é o contrário da doença, mas uma diferença na capacidade de lidar com as dificuldades. Você então perguntaria “Ok, mas de que maneira isso interfere em minha vida?”. E obteria uma resposta simples, “A partir do conceito de Canguilhem, passar mal não é mais estar doente. Estar doente é passar mal e não conseguir passar bem novamente.” Saúde e doença tornam-se os movimentos do organismo para sair ou não de um estado de sofrimento e entrar em um estado de vitalidade.

Algum exemplo?

Uma pessoa pode ter depressão, com sintomas claros, e estar em um movimento de luta para sair desse processo, e aí ela já tem essa capacidade normativa, de construção de leis. Saúde não é o final, mas a possibilidade de construir novos funcionamentos. Isso possibilita entender que uma pessoa que teve um surto psicótico pode estar saudável na medida em que, apesar de sofrer com suas vivências alucinatórias/delirantes, consegue se reconstruir e se situar diante da vida. Saúde não é mais a extirpação de uma doença, mas a possibilidade de lidar com os sofrimentos e com os problemas próprios, até porque, a doença deixa de ser um estado e passa a ser uma redução da capacidade de se modificar na interação com a vida. [Lembre-se do problema de asma, da febre, que não são exatamente doenças – em ambos os casos é o organismo tentando lidar com o que o agride]. Pense em situações como tentativas de suicídio, em que a pessoa desiste de tentar interagir com sua realidade por estagnação, por não mais querer. [Deve-se considerar que existem muitos motivos e muitas circunstâncias para que alguém decida pelo seu fim; questões aqui]. Lembre-se dos casos de pessoas que sofreram acidentes graves e não puderam mais caminhar e, mesmo sem as pernas, conseguiram voltar a interagir com a vida, construindo novas normas.
Um paciente deprimido recorre ao serviço de saúde. Ele sofre, está desmotivado, parado, sem interações, não chora, sequer fala direito, quase mudo. Começa a ser acompanhado e em algum tempo passa a falar de pensamentos negativos, chora, relata seu sofrimento de uma maneira delicada. A família acredita que ele piora, afinal, está abrindo a boca para falar do sofrimento, pensa que somente quem reclama está sofrendo [lembra-se do carro e de seu barulho? “quem está quieto, está bem”, as pessoas pensam]. Ela não se dá conta de que o paciente tornou-se mais normativo que antes, pois estava estagnado, e essa estagnação era sua condição de doente. Agora ele até reclama, mas isso já mostra que está mudando sua posição, tornando-se mais ativo. Ainda assim, nos antigos termos de saúde/doença, ele está doente, “possui” uma doença, porém, nos novos termos de saúde/doença, ele tem mais capacidade normativa. Perceba que o conceito de Canguilhem não anula o da OMS, mas coloca uma possibilidade de questionamento. O conceito da OMS é necessário, pois visa as políticas de saúde, a saúde da população como um todo. O conceito de Canguilhem não, ele visa o indivíduo, é clínico em sua definição. Não são complementares, mas são passíveis de diálogo. Na medida em que se atende a um paciente, é necessário reconhecer nele mudanças sutis, que apontem dentro da noção clássica de doença o funcionamento de novas interações e, portanto, de normatividade, de possibilidades de saúde. Há um momento em que Canguilhem diz que: “… a saúde é uma margem de tolerância às infidelidades do meio”. E ponha-se ênfase no termo “tolerância”. Não é a ausência de doenças, o completo bem-estar, tampouco os meios de traçar esse completo bem-estar, mas a possibilidade de, mesmo estando em sofrimento, lidar com ele e seguir em frente, tolerar as infidelidades da vida e ultrapassá-las.
Justo para cada um, de acordo com a sua própria medida.
Mas enfim, alguma dessas ideias te chamou atenção? Ausência de doenças, completo bem-estar, traçar o caminho em direção ao completo bem-estar, normatividade: o que você entende por saúde?
Para encerrar,
como você está?

P.S. em 19/02/15: Esses são conceitos apresentados em matérias de saúde. Lendo o texto ficam algumas questões: Essa reflexão sobre os conceitos é feita pelos profissionais de saúde? E os demais psicólogos? Além deles, qual seria o conceito de saúde utilizado por outros psicanalistas? Ou a psicanálise tem seu conceito próprio?

P.S. e 25/02/15: Para quem tiver interesse em discussões sobre saúde, esse vídeo discute o livro “O que é Saúde?”, de Naomar de Almeida Filho: “Ciência e Letras: O que é Saúde?“

Deixe seu comentário

comentários

Join the discussion 2 Comentários

Deixe um comentário