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No dia 19/05/18 nós participamos do evento “I Intercâmbio de Psicoterapias Do ES – Tema: Depressão”, organizado pelo psicólogo Diego Souza. No intercâmbio fizemos uma apresentação sobre como a Psicanálise compreende o tema da depressão. Compondo a mesa de apresentação estavam também Fabio Nogueira (psicólogo gestaltista), Luciana Chequer (psicóloga comportamental) e Renzo Rossoni (psiquiatra). O texto da apresentação será disponibilizado em outra postagem.

Flávio Mendes,
psicólogo psicanalista em Vitória/ES.

A Depressão segundo a Escuta da Psicanálise

Olá a todas e todos,

Agradeço o convite para poder falar nesse Intercâmbio e espero poder contribuir com a forma como a Psicanálise compreende e trabalha com a questão da Depressão.

Minha fala está organizada em quatro tópicos: Ressalvas; Epistemologia e Demarcações; Psicanálise e Depressão; Clínica. Acho que assim consigo abarcar o máximo de aspectos.

Ressalvas

Primeiramente, é importante fazer uma ressalva do campo psicanalítico sobre a relação entre psicanálise e psicoterapia. Não tenho dúvidas de que todo psicoterapeuta busque uma transformação em seu paciente. A questão na Psicanálise é como essa transformação é feita e como analista e paciente se relacionam com ela, algo que o Lacan resume da seguinte forma: “o psicanalista certamente dirige o tratamento, mas não deve de modo algum dirigir o paciente[i]. Essa frase aponta para uma preocupação de que o psicanalista não diga ou proponha como o paciente vai lidar com sua vida, e que suas intervenções se restrinjam ao enquadre analítico, ao jogo analítico.

Em segundo lugar, embora eu fale a partir da Psicanálise, é importante destacar que não existe uma só psicanálise, mas várias, envolvendo diferenças e discordâncias quanto ao modo de formação do analista, de compreensão da teoria, de realização da prática, o que coloca a questão de qual psicanálise está sendo apresentada. A Psicanálise não é um campo homogêneo, nenhuma instituição psicanalítica tem hegemonia em relação às demais, então, ao falar dela, é importante situar um certo lugar de trabalho.

Terceiro, apesar da Psicanálise ser considerada uma abordagem psicológica, o que coloca a Psicanálise no campo da Psicologia, ela é um campo autônomo e sem relação direta com a Psicologia, mas tendo uma relação de protocooperação: não há obrigatoriedade de uma para com a outra.

Pretendo falar melhor dessas três ressalvas ao longo dos tópicos seguintes. Estou situando aqui para que elas fiquem como ideias importantes a considerar.

Epistemologia e Demarcações

Pessoalmente, comecei a usar o termo Demarcação para pensar meu trabalho, ao longo dos anos de minha formação, a partir dos estudos de epistemologia e filosofia da ciência. Através da questão da Demarcação é possível entender que um problema que levantamos para resolver é mais dependente do campo em que trabalhamos que da realidade com a qual trabalhamos.

Antes de entrar nisso, contudo, sempre que eu penso na Demarcação no campo da Psicologia eu me lembro de um texto do médico-filósofo George Canguilhem chamado “O que é a Psicologia?”, um texto bastante crítico e reflexivo sobre nosso trabalho, no qual ele diz: “das três espécies de doenças mais ininteligíveis e menos curáveis, doenças da pele, doença dos nervos e doenças mentais, o estudo e o tratamento das duas últimas forneceram sempre à psicologia observações e hipóteses[ii], e isso nos coloca sempre numa questão de epistemes: quais são as bases conceituais que nos permitem pensar certo problema e tratá-lo?

É assim que posso chegar ao seguinte: a busca para a resposta de um problema é decorrente da construção de um problema que se dá não na realidade fenomênica, mas na realidade conceitual que demarca o problema. É por meio de conceitos que demarcamos a realidade, e é em função deles que trabalhamos. E quanto a esse aspecto eu já dou a tese sobre o qual construí minha apresentação: “A Psicanálise não tem um tratamento para a Depressão, pois a Depressão não é um problema demarcado pela Psicanálise”.

Depressão é o nome que damos, dentro do campo psiquiátrico/psicológico, para um conjunto de manifestações que observamos e colhemos de pessoas em sofrimento no mundo, que vivem uma dor de existir. Depressão é um signo psiquiátrico, e um signo é sempre composto por uma palavra enquanto sonoridade e forma, um conceito ou significado associado, e um elemento de referência, o fenômeno. Então, Depressão, percebam, não é o fenômeno: a palavra Depressão é datada da modernidade ao contemporâneo; o significado de Depressão assume diferentes matizes de acordo com o campo; o fenômeno referente é antigo.

Isso é tão importante de se entender, pois basta que o sofrimento de um vivente seja nomeado como Depressão, para colhermos um novo sofrimento chamado depressão, assim como o peso do signo médico “câncer” torna a vivência da patologia associada ainda mais desagradável. Escuto muito no consultório pacientes dizendo “não posso ficar louca”, “nossa, não quero ter depressão”, “será que eu tenho é depressão, não pode ser”.

Falar, então, de Depressão a partir da Psicanálise é um não-estar na Psicanálise, mas um estar no campo psiquiátrico, e é por isso que propus a tese de que a Psicanálise não tem um tratamento para a Depressão, tampouco objetivos, embora ela tenha um tratamento para quem a procura. Acho que essa diferença é fundamental.

O psicanalista Jorge Forbes resgata uma fala do médico romeno Carol Sonenreich, que diz “Fora da Medicina, o diagnóstico não tem sentido médico[iii], ou seja, o diagnóstico só tem valor dentro do campo que o estabelece, fora dele, ele é um discurso social, o que é muito próximo da forma como pensamos em psicanálise, entendendo que a linguagem não é nominalista, ou seja, ela não nomeia uma realidade que já está dada fora da linguagem, é com ela que constituímos a própria realidade.

Outra citação interessante do Carol Sonenreich e outros é a seguinte: “Falamos da doença como um conceito, ponto de vista médico. A pessoa é abordada deste ponto de vista. Formulamos doenças, como instrumento para nossas atividades médicas. Às vezes passamos a falar delas, como se fossem realidade em si já que, independentemente da existência do médico, é o paciente que as sofre. São situações vividas pelo paciente, mas concebidas como doenças pela medicina[iv].

O fenômeno humano nomeado como Depressão está no cruzamento de um conjunto de discursos e saberes, sendo eles da OMS, da psiquiatria, da psicologia, da religião, da própria psicanálise, e assim por diante, ou seja, uma proliferação de discursos. Todos esses campos, incluindo nós aqui hoje, estão no caminho de pensar a questão da causalidade, entendendo que a partir do momento que sabemos algo da causalidade do problema, podemos pensar em formas de lidar com ele. A questão é que a causalidade depende menos do problema, que dos instrumentos teóricos e clínicos que utilizamos, que do recorte que fazemos.

Assim, a pergunta que fica é: a partir de qual paradigma, de qual episteme, de qual teoria, que pensamos a causalidade dos problemas que demarcamos? Há diferentes leituras sobre a causalidade da Depressão, entretanto, a leitura oficial da OMS é a de compreendê-la a partir do paradigma biopsicossocial, que compõe o conceito de saúde como “o estado de completo bem-estar biológico, psicológico e social e não somente a ausência de doenças”. Esse paradigma é bastante utilizado na Psicologia, mas a Psicanálise não caminha com ele.

Quando Freud começou sua teorização, ele estabeleceu o paradigma psicossomático, que veio depois do biomédico e antes do biopsicossocial. Hoje ele também é bastante difundido entre as abordagens psicológicas. Pensem em cada um desses paradigmas como demarcações epistemológicas: 1º) Entender a causa das doenças buscando a verdade no corpo; 2º) Entender a causa das doenças buscando a verdade na relação mente e corpo; 3º) Entender as causas das doenças buscando a verdade na relação entre aspectos biológicos, psicológicos e sociais. Destaco que existem outros paradigmas possíveis.

Entretanto, embora Freud esteja no paradigma psicossomático, a leitura que ele fez da relação mente e corpo implica a existência de uma entidade viva, não localizável, não objetificável, dinâmica, que tem relação direta com a produção dos sintomas e padecimentos, a saber, o Inconsciente.

É tomando esse aspecto da causalidade que eu amplio então a tese que propus: “A Psicanálise não tem um tratamento para a Depressão pois a Depressão não é um problema demarcado pela Psicanálise. Ela tem um tratamento para o deprimido, e é por meio de sua fala, na qual emerge o Inconsciente, que se identifica uma verdade sobre a causa de sua depressão”.

Psicanálise e Depressão

Nesse momento de meu percurso profissional eu me considero um psicólogo psicanalista. Essa nomeação sinaliza a sustentação de uma tensão entre esses dois campos, porque Psicologia e Psicanálise não necessariamente convergem, mas eventualmente dialogam. Quando eu falo Psicologia, estou falando da ciência e da profissão, com seu código de ética, diferentes abordagens e formas de compreensão, que não necessariamente tem convergência com a Psicanálise. Volto à ideia da protocooperação que falei no início.

Os primórdios da Psicanálise estão no percurso de Freud, que estabeleceu o campo, construiu um conjunto de elaborações e uma proposta clínica e propôs sua institucionalização. De lá para cá, a Psicanálise passou por diferentes acontecimentos. No campo, dificilmente uma teorização anula as anteriores, e os conceitos servem como uma trama que permite a cada analista se posicionar diante dos pacientes – e isso cada um aprende em seu percurso pessoal, não há uma formação didática. Além disso, existem diferentes teorizações, que não necessariamente convergem entre si. Contudo, todo psicanalista em seu percurso passa pelo tripé de formação, cuja base começa em Freud e se estabelece com a análise pessoal, os estudos e a supervisão. Isso é fundamental.

Sobre a Psicanálise, essencialmente ela é uma teoria e uma clínica sobre a Perda[v], que recebe em suas construções muitos nomes: ausência, falta, vazio, trauma, castração, privação, frustração, morte etc. Na teoria psicanalítica, é em função de nossa relação com as perdas que construímos nossa subjetividade. Cito pelo menos duas que o campo considera fundamentais: 1º) A perda por inserir-se na comunidade humana, subtraindo-se da natureza e submetendo-se aos cuidados, à linguagem e à lei de quem cuida, o que coloca a criança dentro do contexto parental de forma assujeitada, tendo que demandar aos familiares seu cuidado e o acesso à satisfação, processo como um todo que resumimos na frase “a criança é sintoma dos pais”; 2º) A perda da saída desse primeiro lugar, tendo a criança que elaborar sua vivência no fora do contexto familiar, principalmente do materno, e construindo suas instâncias psíquicas, seus ideais e sua própria forma de lidar com mundo.

Assim, a construção psíquica da criança gira em torno de elaborar as perdas que ela viveu no começo de sua vida, e ela o faz na medida de seu contato com o outro, ao passo em que é amada pelo outro, ou, como dizemos, erotizada. É pela via do amor – que inclui afeto, linguagem, cuidados, presença, ausência – que entendemos por erotismo, que a criança constrói suas elaborações sobre as perdas. Ao mesmo tempo, essas elaborações são extremamente singulares e permitem a cada criança construir sua própria realidade psíquica, ou seja, suas fantasias, ou ainda, uma tela de significação do mundo.

É a partir da forma como elaboramos essas perdas que constituímos nosso modo singular de lidar conosco e com os objetos do mundo (pessoas, atividades, coisas), estruturando nossa relação subjetiva com a perda de forma neurótica, psicótica ou perversa. É distinguindo esses três modos de estruturação, que não são tipos psicológicos ou características de personalidades, mas estruturações em torno das perdas, que o psicanalista trabalha em sua clínica. É somente em função dessas estruturações que o tratamento se modifica. Em sua clínica, portanto, o psicanalista trabalha com o diagnóstico estrutural ao invés do diagnóstico fenomenológico, e é aí que entra a questão da Depressão.

Antes do termo Depressão ganhar o peso que tem hoje, era o termo Melancolia que estava nas discussões sobre esse modo de sofrimento. O termo Melancolia, entretanto, é bem anterior, presente na Antiguidade, e aparece associado aos homens de exceção (filósofos, poetas, artistas), aqueles dominados pela bílis negra na teoria dos humores de Hipócrates, propensos à imaginação e à memória. A Melancolia só foi entendida como uma doença mental quando a psiquiatria construiu seu campo ao longo do século XIX, associando-a à mania e demarcando-a como psicose maníaco-depressiva, depois chamada de transtorno bipolar.

Na leitura de Freud, o termo Melancolia foi mantido e refletido em comparação ao tema do Luto[vi], considerando que em ambos está configurada uma questão com a perda de algo, sendo o Luto “a reação à perda de um ente querido, à perda de alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido, como o país, a liberdade ou o ideal de alguém, e assim por diante”, algo reconhecível, e na Melancolia a perda de um objeto não reconhecível, a perda de algo no próprio psiquismo, que não deu conta de se elaborar. Enquanto o Luto é um trabalho de elaboração dos objetos no mundo, desinvestindo e reinvestindo afeto, pensamentos, valores nesses objetos, na Melancolia o sujeito se perdeu junto com seu objeto. É por isso que passamos pelo Luto sempre que perdemos algo, mas a Melancolia é uma perda em que nós nos perdemos com a perda.

Agora, a Depressão, considerada pela Psicanálise não é uma estrutura psíquica, mas um abalo na forma do sujeito lidar com as perdas em sua vida, que toca nos elementos de sua própria constituição psíquica. O depressivo é alguém que, ao longo de suas experiências na vida, passa por um conjunto de acontecimentos que perturbam sua própria estruturação subjetiva, remetida aos primórdios de sua experiência subjetiva no mundo e às fantasias que construiu para significar a realidade. É por abalar sua estruturação que essa pessoa não dá conta de se reposicionar e encontrar prazer e satisfação, então, ela se deprime, afunda, e entra em contato com a dor de existir, com as perdas nuas e cruas.

Considerando a forma com que cada sujeito estruturado vive com os ideais e os acontecimentos do mundo, a Depressão se coloca na medida em que o sujeito abre mão de lidar com o mundo, ciente disso ou não, e se afasta dele. Quanto mais os ideais o sobrepujam, quanto mais ele se sente pressionado, mais ele tende, diante dessa cobrança do outro, a afastar-se deprimindo-se. O deprimido é aquele que se sente angustiado e fracassado diante dos ideais e das cobranças da vida.

Não é à toa que o sofrimento o qual chamamos Depressão esteja cada vez mais presente na vivência contemporânea, num mundo que coloca a felicidade como finalidade da vida, diferentemente das épocas anteriores. Quanto à essa questão da felicidade, Freud fala algo bem interessante: nossas possibilidades de felicidade sempre são restringidas por nossa própria constituição. Já a infelicidade é muito menos difícil de experimentar. O sofrimento nos ameaça a partir de três direções: de nosso próprio corpo, condenado à decadência e à dissolução, e que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência; do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de nossos relacionamentos com os outros homens.”[vii].

É pensando nesse sentido que o psicanalista não oferece ao deprimido, nem a ninguém, um retorno ao mundo. Ao contrário, ele oferece um retorno à sua própria estruturação para entender o que, do mundo, fez ressoar, perturbar, equivocar, estranhar sua constituição subjetiva. Daí que surge a questão de que o analista não dirige o paciente, pois não diz como ele deve viver a vida, mas dirige o tratamento, para que o paciente se volte aos primórdios de sua própria constituição.

Clínica

Dos quatro conceitos fundamentais da Psicanálise, situados por Lacan (o inconsciente, a transferência, a repetição e a pulsão), a pedra fundamental do campo é o Inconsciente. Foi a partir dele que Freud começou a pensar sua clínica e a construir outras elaborações como a concepção da sexualidade infantil, a interpretação dos sonhos, os conceitos de resistência e transferência, a regra da associação livre, a metapsicologia com os pontos de vista topográfico, dinâmico e econômico, o tratamento das neuroses etc. Eu definiria bem suavemente o Inconsciente freudiano, dinâmico, da seguinte forma: “O inconsciente é algo que acontece em mim que me ultrapassa”, diferentemente da fórmula “O inconsciente é o que está fora da consciência”.

Destrinchando a frase, podemos retirar duas: “Algo que acontece em mim” e “Algo que me ultrapassa”. Na primeira delas conseguimos demarcar em nós mesmos algo que reconhecemos como sendo eu ou meu. Na segunda frase temos uma parte que acontece e não reconhecemos como sendo eu ou meu. Chamemos a primeira parte de consciente e a segunda de inconsciente. No campo temos muito mais conceitos e delimitações para pensar isso, mas na apresentação cabe essa bem resumida e inicial.

Temos então dois lugares coexistindo nessa frase, e o que eu posso falar sobre o Inconsciente é que ele é esse aspecto de estranhamento em nossa vida, de perturbação, de equívoco, de engano que, diante dele, uma parte de nossa realidade psíquica não consegue reconhecer.

Exemplificando o inconsciente: uma palavra que sai e você não a reconhece; um sonho e seus estranhamentos; uma lembrança que surge espontaneamente em seus pensamentos; um esquecimento; a troca do nome de alguém; um movimento corpóreo manifestado sem sua decisão; a leitura de uma palavra no texto que saiu outra; um ato qualquer que você não reconhece ou toda manifestação que caiba na sentença “Algo que acontece em mim que me ultrapassa”. Tem-se discutido, inclusive, sobre os “erros” de corretor de mensagem, que sempre fazem qualquer coisa virar sexual. Essa é uma questão epistemológica sobre quais são os fenômenos que entram na demarcação do conceito de Inconsciente.

Na clínica, não trabalhamos com as categorias de indivíduo. Trabalhamos com a categoria de divisão subjetiva, ou seja, não consideramos a pessoa que nos procura como um todo, mas como uma cisão, que nos busca para ter uma recuperação dessa cisão, uma tentativa de ser completa, de aumentar o controle sobre sua própria vida.

Diante dessa demanda de tratamento, o analista oferece um trabalho diferente: ele acolhe a pessoa que está em sofrimento, pedindo que ela fale livremente o que passa em sua cabeça e, ao fazer isso, processos inconscientes, que demarquei a pouco, se manifestam e se trabalha nessa interface entre consciência e inconsciente.

O analista é um historiador, porque ele trabalha com a narrativa do paciente sobre sua vida, situando suas fantasias infantis na relação com o mundo, identificando as cenas primárias lembradas, seus posicionamentos e decisões, escutando e apontando os deslizes, equívocos, perturbações, que são fundamentais, sem o objetivo de corrigi-los, mas de trazê-los à elaboração. Ele também é um historia-a-dor, que entende que a dor, o sofrimento, pode ser colocado em palavras, relacionado em outra instância que não a do corpo biológico, o que remete à uma relação muito profunda e visceral do humano com a linguagem.

Em seu ofício, ele se exclui o máximo possível da cena em jogo com o paciente. Considerando Lacan, não é só o paciente que entra com sua quota no tratamento, o analista também paga: com suas palavras, que são elevadas ao efeito de interpretações pelo analisante; com sua pessoa, pois ele a empresta como suporte aos fenômenos transferenciais; com seu juízo mais íntimo, para intervir tocando no cerne do ser do paciente colocando o menos possível o seu próprio ser[viii]. Ele se cala, desconfia dos agrados, não fala de si, não apresenta seu eu; suas intervenções tendem a apenas apontar as frases do paciente, destacar palavras, pedir que fale mais; ele se utiliza do divã para que o paciente se sinta solitário e desamparado do olhar acolhedor, embora também se sinta gentilmente convidado a falar de si para si e para um outro que só comparece como silêncio e som.

Nosso objetivo no tratamento é instaurar uma relação mais interessante entre consciente e inconsciente, sem fortalecer o lado consciente da pessoa valorizando-o, sem submeter seu inconsciente à consciência, sem tentar fundir teoricamente as duas coisas, sem buscar uma completude, mantendo a característica da perda, central na experiência humana.

Ao passo que o analista tenta se colocar como um morto subjetivamente, ele abre espaço para que o paciente insira nesse contexto suas próprias representações e seu modo de estruturação, e é aí que se constitui o que chamamos de transferência, que não é um vínculo qualquer. Na relação com o analista, ele reviverá momentos de sua própria constituição com o outro e, consequentemente, os aspectos traumáticos dessa constituição, afinal de contas, o analista, mesmo sendo acolhedor e convidando-o à fala, presentifica a perda, pois se cala, se afasta visualmente, se recusa a aceitar os caprichos, frustra-o. O tratamento, por conseguinte, não vai no sentido de ajudá-lo a lidar com os problemas em sua vida, mas a reelaborar sua posição subjetiva, pedaços de sua estruturação subjetiva infantil, o que, em consequência, mudará sua relação com os problemas em sua vida. Isso é uma análise.

Acho que assim eu consigo apresentar o campo e como ele funciona na clínica. Agora, o que isso tem a ver com a tese de que o psicanalista tem um tratamento para o deprimido e não para a Depressão? É que, em psicanálise, não importa quem busque, o que está em questão é menos o diagnóstico psiquiátrico, fenomenológico, que seu modo singular de organização psíquica, que tem uma estrutura de funcionamento que se constituiu na infância. É considerando esse aspecto que o psicanalista oferta tratamento.

A pessoa sofrente será convidada a falar livremente tudo o que se passa em sua cabeça, mesmo que isso seja difícil, mesmo que o analista possa sustentar essa dificuldade inicial, para que possa escutar não a anamnese, o relato da sua vida como fatos objetivados, mas suas memórias colocadas em palavras – as palavras que utiliza para descrever a si mesmo, muitas das quais vieram de sua relação com o outro –, os equívocos, esquecimentos, estranhamentos, paradoxos, processos linguísticos que emergem em seu relato e apontam para lugares diferentes, e, paulatinamente, reestabelecer os pontos em que ele, diante de sua vivência no mundo, lidando por meio de sua estruturação, posicionou-se dessa forma, deprimida. Coincidem, na proposta do psicanalista, por fim, o tratamento da estruturação subjetiva com a busca da causa.

É assim que se pode escutar:

1) De uma moça deprimida, depois de inseri-la na regra do falar livremente o que passa pela cabeça, a passagem de uma fala vazia sobre os sintomas, de um não saber de nada, para outra de que quando ela precisa ter ânimo e não quer fazer nada os sintomas aparecem, de que a guerra de seus desejos vem quando ela procrastina, de que embora ela fosse amada pelo pai por ser gorda, ela se sentia rejeitada pelos colegas na hora da dança, e de que ela se sentia extremamente irritada pela diferença nos privilégios entre homens e mulheres, o que ela agradece por, tal qual os homens, não menstruar, portanto, uma questão com a feminilidade;

2) De uma moça que diz “viver é muito dolorido, morrer é um descanso”, caminhar pela fala até sua insatisfação pela independência dos filhos, sentindo tristeza e culpa intensas, tentando cometer suicídio, e ligando ao analista, dizendo-lhe após que este se preocupa com ela, e estabelecendo uma reconstrução em torno desse sentimento de abandono e perda de diversas partes, filhos, esposo, animal de estimação, chegando então a elaborar que em certo momento consegue colocar outras coisas no lugar daquilo que perdeu;[ix]

3) De uma senhora que chega ao atendimento vivenciando uma dor profunda, com ideação suicida, escutando nas primeiras falas que esta perdeu o marido de forma súbita e não teve a chance de falar com ele, e, ao falar sobre o marido morto, ela diz “ou eu mato meu marido ou ele me mata”, denotando que, mesmo morto, ele permanece vivo e sufocante para ela, o que, ao longo de suas falas, ela modifica para “eu preciso enterrar o meu marido”, saindo de uma identificação ao morto para um enlutamento com o morto[x];

4) De uma mulher de 42 anos, fazendo uso de antidepressivos desde os 30, com sintomas que a impedem de sair de casa, chegando a crises com sensação de que morrerá, escuta-se uma fala de que “eu me grudo nas pessoas”. Casada e dependente financeiramente do esposo, coloca seu foco em vestir-se bem e em ter objetos de luxo e de beleza, tanto em sua vestimenta quanto em sua casa, enquanto, simultaneamente se identifica com moradores de rua e animais abandonados. Não possui filhos, tem um gato que chama de “bebê”, mesmo termo que a mãe lhe chama até então. Cercada de cuidados por essa mãe, entende só posteriormente que havia uma relação despótica. Entretanto, assume que gosta de ser tratada como bebê. Queixa-se que perdeu um contexto de proteção aos 11 anos, quando a mãe se separou do pai e saiu de casa, episódio a partir do qual ficou angustiada e passou a tomar os primeiros ansiolíticos. Sente-se traída pela mãe, por ter saído do papel que ocupava, que passou a ser ocupado por uma governanta, que até então vive em sua casa há muitos anos[xi].

Espero ter conseguido alcançar o objetivo de apresentar como a Psicanálise compreende e propõe um tratamento para a Depressão.[xii]

Referências

[i] LACAN, Jacques. A direção do tratamento e os princípios do seu poder. In:______. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 591-652.

[ii] CANGUILHEM, George. Estudos de história e de filosofia das ciências concernentes aos vivos e à vida. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 402.

[iii] FORBES, Jorge. Inconsciente e responsabilidade: psicanálise do século XXI. São Paulo: Manole, 2002, p. 50.

[iv] SONENREICH, Carol; ESTEVAO, Giordano; SILVA FILHO, Luis de Morais Altenfelder. Notas sobre psicopatologia. Rev. latinoam. psicopatol. fundam., São Paulo, v. 2, n. 3, p. 124-145, 1999.

[v] No dia da apresentação, dissemos que a psicanálise é uma teoria sobre a Perda. Posteriormente, em supervisão, refletimos que o melhor termo seria uma teoria sobre a Falta, e a Perda é uma das formas como a Falta pode ser interpretada. No texto, mantivemos o original e inserimos essa nota como correção para o futuro.

[vi] FREUD, Sigmund. Luto e Melancolia. In:______. Obras Completas Edição Standard, vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 245-266.

[vii] FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. In:______. Obras Completas Edição Standard, vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 67-148..

[viii] LACAN, Jacques, já citado.

[ix] PÉRET, Maria de Fátima Ferreira. A depressão na clínica lacaniana: um estudo de caso. Universidade Católica Dom Bosco, Mestrado em Psicologia, Campo Grande – MS, 2003.

[x] SIQUEIRA, Érica de Sá Earp. A depressão e o desejo na psicanálise. Estud. pesqui. psicol.,  Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, jun. 2007.

[xi] COSTA, Gley P. Depressão sem tristeza. In: Costa, Gley P. e cols. A clínica psicanalítica das psicopatologias contemporânes. Porto Alegre: Artmed, 2015, p. 181-193.

[xii] Outras referências:

BERLINCK, Manoel Tosta; FEDIDA, Pierre. A clínica da depressão: questões atuais. Rev. latinoam. psicopatol. fundam., São Paulo, v. 3, n. 2, p. 9-25,  jun. 2000.

CLEMENTE, Adauto Silva. As perspectivas psiquiátrica e psicanalítica sobre os “transtornos de humor”. Opção lacaniana online nova série, ano 4, n. 12, nov. 2013.

LACAN, Jacques. Televisão. Rio de Janeiro: Zahar, 1993.

MACHADO, Letícia Vier; FERREIRA, Rodrigo Ramires. A indústria farmacêutica e psicanálise diante da “epidemia de depressão”: respostas possíveis. Psicol. estud., Maringá, v. 19, n. 1, p. 135-144, mar. 2014.

MENDES, Elzilaine Domingues; VIANA, Terezinha de Camargo; BARA, Olivier. Melancolia e depressão: um estudo psicanalítico. Psic.: Teor. e Pesq.,  Brasília ,  v. 30, n. 4, p. 423-431,  dez.  2014 .

MONTEIRO, Kátia Cristine Cavalcante; LAGE, Ana Maria Vieira. Depressão: uma ‘psicopatolologia’ classificada nos manuais de psiquiatria. Psicol. cienc. prof.,  Brasília, v. 27, n. 1, p. 106-119, 2007.

RODRIGUES, Maria Josefina Sota Fuentes. O diagnóstico de depressão. Psicol. USP, São Paulo, v. 11, n. 1, p. 155-187, 2000.

TAVARES, LAT. A depressão como “mal-estar” contemporâneo: medicalização e (ex)-sistência do sujeito depressivo [online]. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010.

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  • Parabéns Flávio Mendes pelo artigo. Excelente a exposição sobre a abordagem psicanalítica quanto à falta e sofrimento humano. @psicantoniofrancisco

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