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O conceito “Transferência” é um dos pilares do campo psicanalítico, você deve saber disso. De forma simples, mas não simplória, Lacan – psicanalista francês – apresenta algumas reflexões sobre esse conceito-fenômeno. Utilizamos a expressão “conceito-fenômeno” para mostrar que o conceito serve para descrever e explicar um processo que acontece no contexto da clínica, na interação entre o paciente e o psicanalista. Lacan apresenta a transferência sobre duas vertentes, uma simbólica e outra imaginária.

Inicialmente, na análise, o que se tem é o funcionamento imaginário (dos ideais, das identificações, do amor, da metade da laranja, da panela e sua tampa). Na sequência, o processo da análise guia a relação para um funcionamento simbólico (das palavras, da palavra plena e autêntica, da busca por um saber sobre si). Note que é um processo que visa sair das idealizações amorosas e caminhar para a autenticidade do uso palavra e da palavra que fala de si. Acompanhe:

“[…] – afinal de contas, o que é a transferência? Na sua essência, a transferência eficaz de que se trata é simplesmente o ato da palavra. Cada vez que um homem fala a outro de maneira autêntica e plena, há, no sentido próprio, transferência, transferência simbólica – alguma coisa se passa que muda a natureza dos dois seres em presença. Mas trata-se aí de uma transferência diversa da que se apresentou inicialmente na análise, não somente como um problema, mas como um obstáculo. Essa função, com efeito, deve ser situada no plano imaginário. É para precisá-la que foram forjadas as noções que vocês sabem, repetição das situações antigas, repetição inconsciente, acionamento de uma reintegração de história […]. Não podemos deixar de ver que uma das questões mais importantes da teoria analítica é saber qual é a relação que há entre os laços de transferência e as características, positivas e negativas, da relação amorosa. Também, desde sempre, a questão do amor de transferência esteve ligada, muito estreitamente, à elaboração analítica da noção de amor. Não se trata do amor enquanto Eros – presença universal de um poder de ligação entre os sujeitos, como uma espécie de catástrofe psicológica. Coloca-se, como vocês o sabem, a questão de saber em que esse amor-paixão é, no seu fundamento, ligado à relação analítica. Trata-se precisamente disto – o que é esse amor, que intervém enquanto mola imaginária na análise?” ¹

Veja que, da forma como foi posto, existe uma diferença clara entre a transferência imaginária e a simbólica. No caso da transferência imaginária, o paciente vive uma relação idealizada com o psicanalista, acreditando que este sabe tudo sobre o paciente e resolverá todos os seus conflitos em um piscar de olhos. O imaginário, você já deve estar entendendo, é o campo das idealizações.
Diferentemente desse, a transferência simbólica acontece com a queda de algumas idealizações, quando o paciente começa a dar-se conta de que suas palavras falam mais do que ele quer dizer, e podem falar muito dele próprio.

Nesse momento, o paciente passa a duvidar da idealização que faz do psicanalista, considerando suas palavras singulares como fundamentais na descoberta de um saber sobre si. Assim, ele já não precisa tanto, por exemplo, da presença visual do psicanalista, surgindo o divã como aparato técnico no tratamento. O que o divã realiza? Ele permite quebrar a relação de olhar que existe entre paciente e psicanalista, permitindo ao paciente se guiar pelo que escuta (palavras – símbolos), ao invés de se preocupar com as expressões e com o olhar do psicanalista (imagens, identificações, idealizações).

Para você que achava que o divã era um lugar de descanso e conforto, é exatamente o contrário. O divã é um lugar desconfortável, embora prazeroso, em que o paciente quebra a transferência imaginária e idealizada com o psicanalista e passa a entrar no terreno tortuoso da palavra, constituindo uma relação simbólica com o que diz e escuta. A palavra ganha o seu devido valor e plenitude.

Pronto, em uma tacada você conheceu o conceito de transferência em Lacan, e um pouco dos seus conceitos de Simbólico e Imaginário. Interessante, não? Agora, por que o amor tem relação com a transferência? Essa é uma questão para outro momento.

Notas:
¹ Jacques Lacan, O Seminário, Livro 1, Os Escritos Técnicos de Freud (1953-54), Zahar Ed. 2009, p. 149-152.

Imagem: A foto é uma cena do filme “Freud Além da Alma”, quando Freud (Montgomery Clift) está atendendo a paciente Cecily Koertner (Susannah York).

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