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Compare os sonhos de diversas épocas por meio dos relatos dos sonhadores, considerando os enigmas que eles apresentam, as situações de alegria, ansiedade ou de sofrimento, e você perceberá que todos são bastante compreensíveis, mantendo características passíveis de entendimento. Isso só acontece porque os sonhos são apresentados por meio de elementos que fazem parte do contexto social humano, principalmente por seu relato, que é dependente da linguagem.
A arte de interpretar os sonhos muda de acordo com o contexto, com o sentido dado ao que é um sonho e a sua função social. Entretanto, a interpretação dos sonhos não se confunde com os próprios sonhos, pois estes são produções privadas, embora vivenciadas por todos os seres humanos.
Uma das impressões que se tem ao ler artigos científicos que falam de sonhos – os diversos deles, das ciências humanas e sociais até as ciências naturais – é a de que, em se tratando do estudo dos sonhos, cada pesquisador/clínico é guiado por sua área e, a depender do trabalho que ele pretende realizar, de seu objetivo, portanto, a forma de entender e intervir sobre o sonho muda consideravelmente.
É possível situar, rapidamente, três maneiras de tratar os sonhos [nada estanques, só para esquematizar diferenciando algumas vias de trabalho com os sonhos]:
  1. Pelo funcionamento do organismo enquanto o sonho acontece (biologia e neurologia do sono durante o sonho);
  2. Pela interferência consciente e orientada no sonho enquanto se sonha (sonhos lúcidos e cognição durante o sonho) [não será apresentado aqui];
  3. Pelo relato do sonho para compartilhá-lo e/ou interpretá-lo depois de ter sonhado (interpretação do sonho ao estar acordado).
O que importa aqui, nesse texto, é qual o interesse sobre os sonhos na clínica, no momento em que, diante do profissional de psicoterapia/psicanálise, o paciente se percebe estranhando ou achando interessante um sonho que teve, ao ponto de se encorajar a dizer que sonhou, desconcertando-se inclusive com o fato de estar falando disso em uma sessão psicoterapêutica ou psicanalítica.
Considerando o interesse clínico, o que está em questão no sonho é o seu relato, terceira maneira de tratar dos sonhos, não a neurobiologia do sonho, tampouco a interferência consciente sobre ele. Deve-se considerar, como exemplo, que a neurobiologia do sonho está preocupada, na maioria das vezes, com o funcionamento biológico associado à produção do sonho, ou seja, com o sono e suas regulações, muitas vezes sem estudar qualquer elemento sobre a vivência ou o relato do sonho.
A título de informação:
Em um artigo clássico chamado The Brain as a Dream State Generator (O Cérebro como um Gerador de Estado de Sonho), de 1977, os autores Hobson e McCarley, embora façam uma apresentação interessantíssima sobre sonhos e sono, chegando ao método, relatam não precisarem do sonho para realizar os experimentos, mas da presença de determinado tipo de sono, o sono dessincronizado, depois chamado sono REM (Rapid Eye Movement – Movimento Rápido dos Olhos) que:
 
“Pela razão de nós não termos nenhuma evidência direta de qualquer diferença significativa entre o estado do cérebro do homem e o estado do cérebro de outros mamíferos durante o sono dessincronizado [sono REM], nós nos sentimos justificados em afirmar que o estado do cérebro do nosso animal experimental, o gato, constitui um sujeito [sujeito cobaia] razoável para nosso estudo do cérebro como um gerador de processo de sonho, quer gatos sonhem ou não. Estas afirmações parecem justificadas, uma vez que estamos restringindo nossa atenção aqui para aspectos formais da experiência do sonho; o nosso modelo experimental não precisa sonhar ou mesmo possuir “consciência” para ser útil como uma fonte de informação fisiológica. [tradução nossa].” ¹
 
A forma de compreensão do sonho pelos autores é realizada não pelo estudo do sonho, mas pelo estudo dos processos biológicos que produzem ou estão associados à presença do sonho – mesmo que o animal não sonhe. Embora seja um artigo de 1977, ele não difere, em termos de articulação teoria-método-objeto-sujeito, de algumas pesquisas atuais sobre os sonhos na área de neurociência e biologia.
 
¹ HOBSON, J. A.; MCCARLEY, M. D. R. W. The brain as a dream station generator: an activation-synthesis hypothesis of the dream process. The American Journal of Psychiatry, v. 134, n. 12, 1977, p. 1338.
Exemplificando então: 
 Você é alguém que se impressionou com um sonho e quer contar a alguém, seja informando que sonhou, ou já contando o sonho com detalhes. Você está diante de alguém que te escuta, e que pode agir de algumas maneiras: Não se interessar pelo seu sonho e buscar questões concretas para conversar; Escutar o sonho mas não dar importância a ele; Achar seu sonho interessante e querer contar os sonhos dela(e) como troca de figurinhas; Mostrar-se consternada(o) com o sonho e exigir uma ação imediata de sua parte; Dizer que o sonho é uma premonição e ficar ainda mais preocupada(o); Propor te auxiliar a interpretar o sonho de acordo com determinado método.
Claramente, aqui se segue pela última possibilidade, situando algumas práticas de interpretação, até porque, as opções anteriores já são as que geralmente acontecem, enquanto a última tende a acontecer quando você procura ajuda profissional – ou quando sua amiga ou seu amigo são fascinados por sonhos e querem te ajudar.
Colocando então alguns métodos de interpretação possíveis:
  • Método 1: Utilização de um código pré-definido de interpretação [Método do Senso Comum: sonhos tem interpretação pré-fixada ou sentido dado]. Nesse método, a pessoa que você buscou pega um dicionário de sonhos e pronto. Ela interpreta seu sonho de acordo com um conhecimento pré-concebido. Esse “pré” aponta para um sentido já dado, bastando você buscar no dicionário. Isso tem aos montes na internet, inclusive.
  • Método 2: Interpretar por contextualização vivencial/social do sonho [Método de Práticas Psicoterapêuticas: Referência ao contexto de vida]. Aqui, você procurou ajuda profissional, e essa pessoa te perguntará sobre suas relações sociais, o que você faz, quem são as personagens do sonho, se vocês as conhece etc, ou seja, o profissional procurará conhecer o seu contexto vital, o ambiente cultural em que você vive, e encontrará ali meios de interpretar o sonho segundo o contexto de sua vida.
  • Método 3: Interpretar com base na associação de ideias do paciente [Método da Prática Psicanalítica: Referência aos pensamentos que surgem espontaneamente enquanto se fala do sonho]. Você procurou um profissional que te pedirá que fale o que  passa por sua cabeça enquanto você pensa em cada parte do sonho, e você começa a perceber que as estranhezas do sonho te remetem a sentimentos, emoções, lembranças de vivências algumas das quais sem relação clara com o sonho, sem nexo. A partir desse material que você relata, o profissional te ajudará com a interpretação.
O primeiro método te encaixa no senso comum do sonho, e você fica presa(o) a essa malha. É um método do senso comum, você acha em tudo quanto é site na internet e faz até sozinha(o) em casa. É uma prática extremamente diretiva, rígida até, que diz exatamente o que está acontecendo com você, dando pouca abertura para que haja outras opções ou para pensar a respeito.
O segundo contextualiza o sonho de acordo com suas vivências pessoais e sociais. É um método de diversas práticas psicoterápicas, realizado por profissionais e obtendo ótimo resultados ao contextualizarem o relato que você faz segundo suas vivências, interpretando com base nas teorias que embasam essas práticas e refletindo sobre sua vida. Visando entender o funcionamento da sua vida, algumas práticas podem ser diretivas perguntando sobre suas vivências e contextualizando-as, tornando claro aquilo que você não percebe no seu dia-a-dia e que apareceu no sonho, sem te aprisionar a uma ideia fixa como no senso comum.
O terceiro interpreta o sonho em função das lembranças e ideias que você passa a descrever na medida em que lhe vem à cabeça quando você relata o sonho – esse é o método psicanalítico. Ele particulariza a interpretação ao extremo, utilizando a trama das suas lembranças como guia. Nesse caso, o contexto social só ganha valor na medida em que emerge nas suas lembranças, pois o que importa é aquilo que passa nos seus pensamentos enquanto você narra o sonho. Assim, é uma prática de interpretar que não te dirige em sua narrativa, não sendo diretiva, pois pretende que ser o mais particular possível.
Cada método tem suas implicações e cada escolha de um ou outro interfere na forma de trabalho, na condução do tratamento e nas questões as quais se chegarão. Em geral, você:
  • Pode trabalhar o sonho fazendo experimentos com animais, comparando-os a humanos.
  • Pode interpretar seus sonhos procurando o sentido em dicionários de sonhos vendidos por aí ou na internet.
  • Pode buscar em seu contexto de vida a chave para interpretar seu sonho, com ajuda profissional psicoterápica.
  • Pode buscar em suas lembranças a trama para interpretar o sonho, em função das ideias que de repente saltam em seus pensamentos, com a ajuda de um profissional psicanalista.
É uma questão de escolha. Sempre foi.
E aí, como você interpreta os seus sonhos?

Observação (em 10/05/2015) : Existem outras formas de trabalhar os sonhos na psicologia, dependendo da abordagem do profissional que te atende.

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